Descobrimentos, radicalismos e museu
Pretende-se agora que a mera palavra “descobrimentos” faz de quem a usa cripto-colonialista ou “luso-tropicalista”.
Referi-me antes neste jornal ao que penso sobre um futuro “Museu das Descobertas”, que preferiria chamar “Museu da Viagem”, não por mera questão de nome, mas por verdadeiro programa alternativo de conteúdos (v. Um museu, muitos nomes: a narrativa de Portugal e o mundo, PÚBLICO, 18.4.2018). Não pensaria voltar ao assunto, até porque estou convencido que nada acabará por ser feito. A sucessiva troca de argumentos sobre o assunto faz-me porém voltar ao assunto, sobretudo pela crescente dimensão ética e geracional que se pretende existir, distinguindo entre “novos” (sem ideologia, quimicamente puros, porque académicos de raiz anglo-saxónica), sensíveis à denúncia do colonialismo, observado distantemente pela óptica “pós-colonial”, e “velhos” (de esquerda ou de direita, tanto faz), agentes activos da luta anticolonial em muitos casos, mas presos, quais títeres, aos mitos do colonialismo ou aos seus sucedâneos.
Voltando ao assunto, tenho necessariamente de começar pelo princípio. No meu tempo de Instrução Primária aprendíamos que tínhamos em Portugal uma “história de santos e heróis”, acrescentando o livro de textos logo de seguida que era “a mais bela história do mundo”. E tudo se fazia para nos inculcar, desde crianças, a ideia de que tivemos uma “idade de ouro”, a dos Descobrimentos, fautora de um Império (ainda hoje a praça fronteira aos Jerónimos leva esse nome), de que nos devíamos orgulhar, pois seríamos um País pluricontinental, “do Minho a Timor”. Todo o meu crescimento, desde que pude começar a pensar por cabeça própria, foi feito contra esses mitos, nacionalistas e coloniais. Aquele não era de todo o meu País, nem o País dos que me rodeavam ou mais admirava. Estes eram, antes de tudo, os “ventres ao sol” ou os “famélicos da terra”, ou seja, era o País dos pobres e da injustiça social que via grassar à volta. Também era o País dos muitos que, mesmo ricos, faziam naquele presente, como tinham feito em passados seculares e milenares, a opção pelo progresso social, dentro dos limites epistemológicos de cada época e das vinculações de classe que naturalmente os condicionavam. Era o País da nobreza patriótica, mas terra-tenente e déspota, da Revolução de 1383-85; era o País da burguesia democrática, mas colonial, da Revolução Republicana (saudada por exemplo por Lenine como o primeiro e melhor exemplo de revolução burguesa patriótica do século XX); era até o País do “general coca-cola”, no seu arrastão popular contra a Ditadura. Sentia portanto que tinha, e continuo a sentir que tenho, um País, uma Pátria, onde se conjugam plataformas interclassistas de defesa do nosso modo de vida, da nossa independência contra o domínio estrangeiro, seja este representado por políticos e exércitos, seja por capitalistas e multinacionais. Declarava-me, e declaro-me hoje também, patriota – e uso a palavra sem temores.
Pretende-se agora que a mera palavra “descobrimentos” faz de quem a usa cripto-colonialista ou “luso-tropicalista”. Até os vereadores comunistas da Câmara Municipal de Lisboa são disso acusados porque propuseram festival literário que tivesse os “descobrimentos” como tema agregador em algum ano futuro. Dir-se-á que não se trata do mesmo Partido que lutou consequentemente contra a Ditadura, considerando a sua queda indissociável do fim do colonialismo. Extraordinária ironia, quando todos sabemos bem onde param hoje a maior parte dos que no imediatamente pós-25 de Abril de 1974 clamavam “nem mais um soldado para as colónias” (palavra de ordem do MRPP, especialmente dirigida contra os partidos da esquerda e o MFA). E o ponto é mesmo este: o do regresso despudorado desse “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista” que então combatíamos activa e até fisicamente. Ora, sendo certo que se trata de fenómeno antigo (“esquerdismo, doença infantil do comunismo”), nem por isso ele é menos irritante quando resvala para acusações de ordem moral ou ética.
Claro que o valor semântico das palavras evolui com o tempo e é substancialmente diverso no espaço (“nigro/negro”, “black/preto”, “collaborateur/colaborador”...). E neste sentido admito que o termo “descobrimentos”, e bem assim o seu sucedâneo “descobertas”, deva ser usado criticamente. Trata-se, além do mais, de termo polissémico. Alberga-se nele a chamada “epopeia dos descobrimentos”, grandíloqua e de “projecto nacional”, tal como contada pelo Estado Novo, quando na verdade os “descobrimentos” foram antes do mais um processo de desenvolvimento do capitalismo mercantil, transportado então para a escala mundial. Mas, sendo isto, foram também condição de desenvolvimento científico e de efectiva “descoberta” recíproca. E se os “descobrimentos” conduziram à exploração e até escravização dos povos colonizados, sobretudo onde (ou a partir de onde) tal era também já praticado pelos poderes dominantes locais, a verdade é que não se traduziram em factor de enriquecimento do povo português. Bem pelo contrário: acentuou-se a pobreza congénita, secular, senão milenar, dos portugueses ou de quem neste território viveu e vivia. E foi a pobreza talvez o mais original traço da nossa colonização, aquele que obrigou a promover na prática, e depois por decreto real, o cruzamento com os povos colonizados. Feios, porcos e maus éramos – tanto como quaisquer outros. Em certos casos até mais em qualquer destas dimensões. Mas éramos também mais pobres – e isso fez, fazia e faz toda a diferença, até no plano da moral e dos costumes.
Todavia, mais do que patriota, como me afirmei acima, sinto-me tributário da terra. E estou convicto que esta é a mais fecunda aproximação do passado, especialmente no caso do espaço que veio a ser fixado como País/Estado/Nação a que chamamos Portugal. Somos aquilo que a nossa posição geográfica de Fim de Mundo fez de nós; somos o produto de uma espessa acumulação de presentes, de hibridizações constantes, desde a mais remota antiguidade até ao presente.
Faz hoje sentido contar esta história de trajectos e naufrágios, no sentido literal e no sentido metafórico? Creio que sim, porque todos os exercícios de memória merecem sempre a pena, desde que feitos de forma pluralista, com o maior número possível de pontos de vista (incluindo, portanto, dimensões como a da denúncia dos mitos fascistas sobre os “descobrimentos” e de acentuação da exploração e escravatura dos povos colonizados). Mas creio sobretudo que tal narrativa e projecto de museu vale a pena, tal como tenho dito e redito, dentro de uma óptica mais ampla, a da “Viagem” (subsumindo dimensões como as da Emigração e da Língua), a do permanente dar e receber de quem se constitui precisamente pela acumulação e cruzamento de “desvairadas gentes”, sejam elas selvagens próximo-orientais e norte-africanos, bárbaros do setentrião europeu, civilizados árabes, escravos africanos... ou eslavos de olhos azuis, imigrantes do Leste europeu.
Entendo finalmente que o projecto que fica enunciado não se encontra, nem poderá vir a encontrar, em nenhum museu já existente e por isso faz falta um novo. E de museu se deve tratar, não de arquivo/centro de estudos ou então de luna-parque comercial. Desde que existem, os museus têm sido combatidos e a sua morte foi já inúmeras vezes anunciada. Foram, na origem, combatidos pela aristocracia do Antigo Regime, quando a Revolução Francesa inventou o conceito de cidadania e colecções outrora fechadas passaram a ser de acesso livre; são hoje combatidos por muitos capitalistas como impedimento ao desenvolvimento do mercado, por se reclamarem ser entidades sem fins-lucrativos, postas ao serviço da emancipação cidadã. O combate que lhe fazem constitui a melhor garantia da sua utilidade e perenidade.