O Tribunal Europeu extravasou as suas competências

O acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), ontem proferido, no caso Pereira Cruz e outros c. Portugal suscita inúmeras reflexões. Atenta a natureza deste espaço, focar-nos-emos somente no aspecto central e mais controverso, necessariamente em linguagem que se procurará perceptível por não juristas e não fugindo ao “incómodo” de tomar posição.

A primeira nota a sublinhar é que o aresto é muito claro ao dizer que não toma – nem podia – posição quanto à justeza das condenações no dito “processo Casa Pia”. Enquanto cidadãos, temos de partir do princípio que, talvez o mais escrutinado dos processos criminais em Portugal, objecto de sucessivos recursos para a Relação de Lisboa, o Supremo e o Tribunal Constitucional (TC), corresponde à verdade judicial, ou seja, aquela que, mesmo não sendo a verdade histórica, é conforme com as provas produzidas ou examinadas em julgamento.

O único argumento ao qual o TEDH entendeu assistir razão a Carlos Cruz (CC) foi o de violar o art. 6.º, n.º 1 da CEDH a não admissão, pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), do que a sua defesa entendia serem novos elementos probatórios, nomeadamente entrevistas a assistentes no processo e um livro escrito por uma das vítimas e que, segundo CC, enfermavam de contradições com a prova julgada em 1.ª instância. Mais se requeria a inquirição de outras testemunhas, assistentes e mesmo de um co-arguido. O TRL alicerçou a sua decisão no esgotamento do prazo processual até ao qual podem ser oferecidos meios de prova (art. 165.º do CPP), mas também por considerar que os mesmos não eram necessários para o esclarecimento dos factos. Juntou ainda que “a prova do que foi dito (…) a um meio de comunicação social não pode confundir-se com a demonstração diante de um tribunal de que um facto ocorreu". Como decidiu o nosso TC, ainda haveria a possibilidade de o arguido lançar mão do recurso extraordinário de revisão, mas aí tem razão o TEDH ao entender que esta via seria excessiva, atenta a jurisprudência constante do STJ no sentido de considerar que só pode ser tida em conta uma prova cuja falsidade tenha sido judicialmente declarada, o que, no caso, levaria anos e constituiria um meio de defesa desproporcionado e violador dessas garantias.

O pomo da discórdia reside em saber se, como por vezes tem sucedido com alguma jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo, não terá ele mesmo ultrapassado os limites da Convenção que lhe cabe cumprir e fazer cumprir. Neste ponto, recordo que a decisão foi tirada com 4 votos a favor (juízes De Gaetano, Pinto de Albuquerque, Vehabovic e Kuris) da existência de violação das regras de um processo justo e equitativo, contra 3 (juízes Yudivska, presidente da secção, Motoc e Paczolay). Julgo que a razão está do lado do voto dissidente.

Não se trata de aferir se o Direito interno assegurou todas as garantias de defesa ao não admitir a junção das provas pretendidas, pois não há nada a censurar, à luz do Direito positivo à época aplicável, à decisão do TRL e às que a confirmaram. O que se não pode admitir, sob pena de inversão da letra e do espírito da CEDH, é que este Tribunal se transforme numa espécie de quarta ou quinta instância de recurso (pleno).

Como bem se refere no voto de vencido, o art. 6.º, n.º 3, al. d) da Convenção atribui uma grande margem de latitude aos tribunais dos Estados-membros que, em regra, não pode ser sindicada pelo TEDH. Acresce que, como aí se escreve, também me choca, como cidadão e jurista, que uma das defesas tenha escrito, no seu recurso para Estrasburgo, que o processo Casa Pia "é o resultado de uma 'fantasia colectiva', consciente e inconsciente, dos alunos e ex-alunos deste estabelecimento para menores".

Andou mal, a meu ver, o TEDH, ao valorizar as entrevistas e o livro publicados após o encerramento da audiência como impondo a sua obrigatória aceitação pelo TRL, em sede recursória. Como bem se lembra no voto dissidente, é muito diferente aquilo que se diz ou escreve nesses espaços e o que se disse e se provou em julgamento, havendo, perante os media, uma tendência natural para “carregar as cores” dos factos, não nos podendo esquecer que um livro deixa sempre espaço aberto à fantasia e que estamos em face de vítimas que, à data dos factos, eram menores e, por isso, sem pôr em causa a credibilidade dos seus testemunhos – validados por tantas perícias médico-legais nos autos –, bem pode suceder que certos aspectos – não centrais para a questão da culpabilidade dos arguidos – vão ganhando outros contornos. Donde, a posição do TEDH seguida em arestos como Schenk c. Suíça, Constantinescu c. Roménia ou Doorson c. Países Baixos, foi agora inflectida. Não se respeitou, ainda, a conjugação dos vários meios de prova – o “exame crítico da prova” – empreendido pelo TRL. Na feliz síntese do voto de vencido, "os argumentos extrajudiciários não deveriam influenciar os tribunais, nem perturbar o desenvolvimento normal do processo judicial".

Dito de outra forma, o TEDH foi, uma vez mais, pretoriano, visto que o art. 6.º da Convenção (fair trial) "garante um processo equitativo, mas não prevê qualquer regra sobre a admissibilidade da prova como tal", uma vez que esta é uma competência exclusiva da jurisdição nacional. Donde, é nossa convicção que o Tribunal de Estrasburgo extravasou as suas competências e, nesse sentido, ao contrário do que poderia ser mais “popular” escrever, prestou um mau serviço à justiça. À justiça tal como conformada pelo texto da CEDH, note-se, pois quanto à justiça nacional feita no concreto processo, sob pena de implosão do sistema, não acredito que derivemos agora numa qualquer tese conspiratória mirabolante contra aqueles que, em obediência às leis da República, foram transitadamente condenados a penas de prisão.

Uma última nota: é evidente que as defesas procurarão lançar mão do recurso extraordinário de revisão para reabrir o processo (art. 449.º, n.º 1, al. g), do CPP). Todavia, mesmo que admitida a revisão, não é expectável uma alteração da decisão de fundo.

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