Portugal volta a ser condenado no processo Casa Pia. E agora?
Processo pode ser reaberto no caso de Carlos Cruz, depois de decisão do Tribunal dos Direitos do Homem. Estado português ainda não decidiu se recorre de condenação.
Nas horas seguintes ao anúncio da condenação de Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por ter prejudicado Carlos Cruz no julgamento do processo Casa Pia eram várias as pessoas a interrogar-se, nos meandros da justiça, sobre as consequências práticas de uma decisão deste tipo. Quer para o apresentador televisivo, quer para situações futuras em que o mesmo tipo de questões se venha a pôr.
Há uma ressalva prévia a fazer: os juízes de Estrasburgo não se pronunciaram sobre os abusos de menores que a justiça portuguesa entendeu terem sido cometidos por este e pelos restantes arguidos. Nem isso lhe foi pedido nos recursos que estes lhes apresentaram. Limitaram-se, como sempre fazem, a analisar questões processuais. E chegaram à conclusão de que, muito embora os seis anos que durou o julgamento sejam justificáveis à luz da complexidade do caso — foram ouvidas nada menos do que 920 testemunhas —, não foram dadas ao apresentador todas as garantias de defesa a que ele deveria ter tido direito.
Em causa não está a forma como decorreu o julgamento de primeira instância, mas sim aquilo que sucedeu quando Carlos Cruz recorreu da sua condenação inicial para o Tribunal da Relação de Lisboa. Perante o teor de entrevistas dadas à comunicação social pelo motorista Carlos Silvino, igualmente sentenciado, e também por algumas vítimas dos abusos, uma das quais escreveu um livro, o apresentador pediu por três vezes que os juízes desembargadores levassem em conta na apreciação do recurso esta documentação. E também que estes protagonistas fossem outra vez ouvidos pela justiça, alegando que o teor das entrevistas e do livro contrariava o que haviam declarado em tribunal. De resto, alguns deles tinham enviado cartas ao Tribunal da Relação admitindo ter prestado declarações falsas que tinham levado à condenação de inocentes. Mas a Relação de Lisboa alegou que se tinha esgotado o prazo para as diligências pedidas, entendendo ainda que esses elementos de prova não se revelavam pertinentes.
Os magistrados de Estrasburgo não entenderam, porém, o mesmo: a análise destes documentos e a audição de novas testemunhas era “susceptível de pôr em causa o acórdão proferido” em primeira instância, e a sua análise podia ter beneficiado o arguido. O facto de o terem privado disso é “incompatível com os requisitos de um julgamento justo”, refere o acórdão desta terça-feira, que dividiu os juízes do tribunal europeu: quatro votaram a favor da violação, mas três votaram vencidos, por entenderem que Portugal não infringiu a Convenção dos Direitos do Homem.
Já as queixas apresentadas a Estrasburgo por Ferreira Diniz, Jorge Ritto e Manuel Abrantes, igualmente condenados neste processo, caíram todas por terra: o tribunal europeu não lhes deu razão. Mesmo Carlos Cruz só teve sucesso numa das reclamações que fez. Os juízes decidiram que nem se justificava o Estado português pagar-lhe uma indemnização, como exigia o apresentador: “A mera constatação de uma violação dos direitos humanos já proporciona, por si só, uma satisfação justa e suficiente pelo dano não-pecuniário sofrido.”
O seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, fala de uma decisão “revolucionária para o direito português”, que tenciona usar para reabrir o processo na justiça portuguesa. O presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Orlando Nascimento, mostra algum cepticismo: “Uma coisa é o pedido poder ser apresentado, outra é ser aceite.” Quanto à repercussão desta decisão em casos futuros, ainda é uma coisa a ver, responde o mesmo responsável: os desembargadores deste tribunal vão agora estudar a deliberação de Estrasburgo, com o objectivo de “extrair ilações para decisões futuras”.
O problema, segundo alguns juristas contactados pelo PÚBLICO, Orlando Nascimento incluído, é que à data da decisão do Tribunal da Relação, em 2012, a lei não permitia aos tribunais de recurso admitirem provas que não tivessem sido apresentadas no julgamento da primeira instância. E não é certo que já o permita. Para a advogada de direito internacional Vânia Costa Ramos, o acórdão de Estrasburgo põe a nu a necessidade de Portugal introduzir alterações no seu regime de recursos judiciais — além de “pôr em causa a justiça da condenação de Carlos Cruz, pelo menos do ponto de vista processual”. “O tribunal europeu chama a atenção para algumas falhas do nosso sistema de recursos”, resume. Quanto a Carlos Cruz, se lhe for negada a reabertura do processo, pode sempre recorrer dessa deliberação outra vez para Estrasburgo.
“O que nos dizem os juízes nesta decisão é para prestarmos atenção às garantias de defesa dos arguidos”, sintetiza, por seu turno, Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Um discurso que choca com aquele habitualmente usado em Portugal, segundo o qual os arguidos beneficiam de demasiados expedientes legais para escaparem às malhas da lei, sublinha. Para Conceição Gomes, há uma lição a retirar da decisão sobre o apresentador: a justiça não pode ser feita à custa do atropelo dos direitos dos suspeitos, mesmo sob o pretexto da necessidade de eficácia. Para a investigadora, era desejável que a decisão de Estrasburgo desse origem a um debate nacional que eventualmente pudesse conduzir a uma alteração da lei.
O Ministério da Justiça ainda não decidiu se irá recorrer do acórdão — nem deste nem de outro proferido na semana passada também sobre o processo Casa Pia, que condena Portugal a indemnizar o ex-ministro do PS Paulo Pedroso em 68 mil euros.
Carlos Cruz foi condenado a seis anos de cadeia, tendo saído em 2016, depois de cumprir a maior parte da sentença. Carlos Silvino foi condenado a 15 anos, Ferreira Diniz a sete, o ex-diplomata Jorge Ritto a seis anos e oito meses e o antigo provedor adjunto da instituição Manuel Abrantes a cinco anos e nove meses. Só um dos arguidos estava acusado de 770 crimes, recorda o resumo feito pela PGR sobre o acórdão desta terça-feira.