Ozu e Oshima, doçura e crueldade no Japão
O “tradicionalismo” dos mestres dizia-lhes pouco, as mensagens de abnegação, sacrifício ou sublimação enraivecia-os, estavam prontos para um cinema de combate. Assim passamos, no ciclo de cinema japonês que ocupa o cinema Nimas, em Lisboa, de Primavera Tardia, de Ozu, a Contos Cruéis da Juventude, de Oshima.
O longo ciclo de cinema japonês que ocupou o cinema Nimas, em Lisboa, durante praticamente todo o mês de Junho chega ao fim com dois filmes que ficarão em exibição durante uma semana. Entre 28 de Junho e 4 de Julho, Primavera Tardia, filme de 1949 de Yasujiro Ozu, em cópia anunciada como correspondente a uma versão restaurada, e tecnicamente uma reposição, visto que o filme foi estreado em Portugal nos anos 90 (na primeira vez que um filme de Ozu foi mostrado no circuito comercial português). Depois, entre 5 e 11 de Julho, Contos Cruéis da Juventude, de 1960, segunda longa-metragem de Nagisa Oshima, também anunciado como uma versão restaurada (e este, não sendo inédito em Portugal, é para todos os efeitos uma estreia, visto que nunca por cá foi mostrado comercialmente).
Ozu e Oshima: 30 anos separam as datas de nascimento de ambos (Yasujiro nasceu em 1903, Nagisa em 1932), são duas gerações, duas vivências, duas “experiências” do Japão, dois cinemas, completamente distintos e, de certa forma, em oposição. Por um breve momento, foram contemporâneos: quando Oshima fez os seus primeiros filmes (no élan da “nova vaga japonesa”, a “noberu bagu”, com Shohei Imamura, Masahiro Shinoda, Hiroshi Teshigahara e vários outros), Ozu, que morreu em 1963, estava ainda vivo e activo, e Contos Cruéis da Juventude estreou-se no mesmo ano de Fim do Outono, antepenúltimo filme do mestre Yasujiro. Esta coexistência de gerações muito diferentes, ainda que por um breve período, não foi um fenómeno exclusivamente japonês – aconteceu no cinema americano, por exemplo, se repararmos que os derradeiros Fords, os derradeiros Hawks, os derradeiros Hitchcocks, são contemporâneos dos primeiros Coppolas, dos primeiros Scorseses, dos primeiros Bogdanovich. A diferença fundamental num caso e noutro é que os jovens americanos (estes jovens americanos, pelo menos) acreditavam colher um testemunho contra o qual não sentiam necessidade de se revoltar. Faziam a “sua coisa” mas aceitavam bem – quando não reverenciavam mesmo – a sombra dos mestres, a sombra dos “pais”.
Para os japoneses era diferente, e essa diferença é a raiz da fúria iconoclasta, destrutiva, da generalidade dos primeiros filmes de Oshima e dos seus companheiros (Contos Cruéis da Juventude, de resto, exemplifica-o bem). Ozu, Mizoguchi (que morrera em 1956), Mikio Naruse (que filmaria ainda durante grande parte dos anos 1960), constituíam o trio de cineastas mais respeitado e admirado no Japão. Vinham dos anos 20 e dos anos 30, tinham acompanhado as transformações do Japão ao longo de décadas, tinham um tempo antes da II Guerra e um tempo depois da II Guerra. Os mais novos só conheciam o tempo depois da guerra (Oshima tinha 9 anos a quando do ataque a Pearl Harbor, 13 anos a quando de Hiroxima), tinham crescido no Japão destruído, e depois reconstruido sob directa influência estrangeira (americana, nomeadamente). O “tradicionalismo” dos mestres dizia-lhes pouco, e as mensagens de abnegação, sacrifício ou sublimação em nome de um statu quo conservador e tradicionalista dizia-lhes ainda menos. Enraivecia-os, não correspondiam ao Japão que conheciam, não correspondiam ao sentimento da juventude do pós-guerra, e sobretudo, acreditavam, tinham sido a apatia tradicionalista, o apego ao formalismo social, a conduzir o Japão à desgraça do totalitarismo e depois à desgraça da guerra. Estavam prontos para um cinema de combate – um cinema de combate ao próprio cinema.
A possibilidade de ver Primavera Tardia e Contos Cruéis da Juventude em sequência releva isto. Há momentos no filme de Oshima em que Ozu parece ser citado para ser desvirtuado, distorcido, decomposto, por exemplo na forma como o jovem cineasta filma os interiores e o espaço doméstico (esse lugar “sacrossanto” do cinema de Ozu) para aí lançar o caos, a desarrumação e a violência. Primavera Tardia, que foi o terceiro filme de Ozu depois da guerra, está já muito próximo daquela depuração (formal e temática) que conhecemos do derradeiro período da sua obra. Tem a fabulosa Setsuko Hara, no primeiro papel para Ozu, e tem o fabuloso Chishu Ryu, como quase sempre o “correspondente” do olhar do cineasta dentro dos filmes. São pai e filha, ele viúvo, ele ainda por casar, muito por causa da viuvez do pai. Com a inexcedível doçura de Ozu, Primavera Tardia é uma reflexão sobre o sacrifício familiar, sobre o amor paternal e sobre o amor filial, sobre a “entrada na vida” a que, nesta perspectiva, corresponde o casamento, e sobre, como em tantos destes Ozus tardios, sobre a aceitação da solidão (representada, como também é habitual, pelo destino da personagem de Chishu Ryu).
É obviamente um filme maravilhoso, sublime. Ora “sublime”, “sublimação”, é precisamente o que não interessa a Oshima. O grande não-dito, ou enfim, um dos grandes não-ditos, do cinema de Ozu, está por todo o lado em Contos Cruéis da Juventude: o sexo, o erotismo mais carnal, numa voracidade para que Oshima encontra expressões literais (os corpos dos seus actores são muito mais inquietos, o físico deles está para “explodir”, para ocupar o espaço do ecran do cinemascope, não para ser “contido” nem escondido) assim como encontra expressões provocantemente figuradas. É uma juventude inquieta, de facto, a meio caminho entre os “rebeldes sem causa” vindos do cinema americano do pós-guerra (os heróis de Nicholas Ray, por exemplo) e a violência intrínseca e latente de alguns heróis ou anti-heróis que em breve o cinema europeu revelaria (dos primeiro Bertoluccis e Bellochios a Fassbinder). E evidentemente, a nouvelle vague, a francesa propriamente dita, com a qual um filme como este, sendo absolutamente contemporâneo, mantém estranhíssimos pontos de contacto (porque não houvera ainda tempo para Oshima ser “influenciado”, tudo se passa praticamente em simultâneo). Mas com uma raiva que não havia na “nouvelle vague”, ou que pelo menos não é a característica mais forte desses primeiros Truffauts ou Godards. Em Oshima, ao contrário deles, filma-se contra a própria vida. E Contos Cruéis ainda é certamente um dos melhores filmes de um cineasta cuja revolta permanente nem sempre conduziu a um equilíbrio tão sanguineamente fulgurante como o que aqui exibe.