Comentários a aspetos macro-financeiros da proposta franco-alemã para o Euro

Um primeiro objetivo estratégico da proposta franco-alemã envolve quebrar o chamado “ciclo da miséria” entre os problemas na dívida pública e nos bancos.

Como referiu Vitor Constâncio no seu discurso de despedida do BCE, “as nossas nações ataram-se ao mastro Odisseico da união monetária”. Navegada com sucesso a tempestade económica e financeira de 2010-12, é sabido que a união monetária permanece incompleta: “Penélope continua à espera”.

Apesar de extenso debate técnico e político, os estados membros ainda não conseguiram acordar passos em frente significativos, parecendo sempre faltar condições políticas. Em 2016, foi o Brexit. Em 2017, eleições em França e na Alemanha. 2018 parece ser uma “janela de oportunidade”, mas um compromisso implementável permanece por alcançar.

Um relatório recente reflete uma proposta franco-alemã com diversas medidas de reforma. Num novo policy brief, Miguel Faria-e-Castro, Ricardo Cabral e Ricardo Reis comentam alguns aspetos macro-financeiros dessa proposta, que têm em comum o facto de serem cruciais para a gestão da dívida pública no Euro. Esta, como se sabe, é descentralizada, na ausência de uma obrigação soberana comum (ao contrário dos EUA). Discutem-se as recomendações para melhorar a regulação bancária, a estabilidade dos mercados financeiros e a gestão de crises de solvência da dívida. Aqui abordam-se apenas os dois primeiros aspetos, cuja relevância para Portugal é incontornável.

Enfrentar o ciclo da miséria” entre bancos e Estados

Um primeiro objetivo estratégico da proposta franco-alemã envolve quebrar o chamado “ciclo da miséria” entre os problemas na dívida pública e nos bancos. Em países como Portugal, a crise orçamental alastrou aos bancos devido à sua grande exposição às obrigações soberanas dos respetivos países.

Um primeiro aspeto da proposta franco-alemã passa por tentar isolar os bancos dos problemas dos respetivos Estados através de penalizações pela concentração de dívida pública, limitando a exposição dos bancos a obrigações de um país em particular. Com tais regras, os bancos dos países periféricos teriam sido forçados a diversificar os seus ativos para longe das obrigações dos seus países (mais arriscadas mas também mais lucrativas) durante a crise. Note-se, porém, que este “pau” traz uma pequena “cenoura”: também os bancos alemães e holandeses seriam induzidos a investir em obrigações portuguesas e gregas.

Faria-e-Castro defende também que a proposta franco-alemã ataca também o sentido inverso daquele ciclo vicioso. Tanto durante como após a crise se assistiram a episódios de complacência da regulação para com os bancos, com motivações políticas internas. Só com regras fortes a nível da zona euro tal pode ser evitado. Mais uma vez, este “pau” traz consigo uma pequena “cenoura”: a resolução bancária deveria ser suportada em última instância por um Fundo de Resolução Único, partilhando entre os países o custo da assistência financeira a bancos problemáticos.

Portugal foi uma das principais vítimas do ciclo da miséria em 2010-12, e permanece extremamente vulnerável a este fenómeno: os bancos grandes continuam muito expostos à dívida pública nacional, a dívida pública (rácio no PIB) é muito elevada, e as garantias públicas ao setor financeiro superam os 6% do PIB. Assim, Faria-e-Castro defende que as  propostas franco-alemãs devem ser vistas como muito positivas para Portugal.

A implementação consistente de regras de supervisão e resolução comuns pode ajudar a resolver os problemas relacionados com a influência política sobre o sistema bancário (e vice-versa). A introdução de penalizações pela concentração de dívida pública pode responder ao duplo objetivo de assegurar maior diversificação (e menor risco) nas carteiras de ativos dos bancos portugueses, que podem assim ter capacidade de financiar o setor não-financeiro mesmo em períodos de dificuldades do Estado.

Ativos seguros na zona euro

A proposta franco-alemã engloba também a criação de um ativo seguro sintético para a zona euro, algo que tem estado em discussão desde a apresentação da ideia por um conjunto de economistas em 2011 e que as autoridades europeias têm aprofundado mais recentemente. A criação de SBBS (Sovereign Bond Backed Securities, também conhecidos por ESBies) consiste em combinar numa carteira a dívida soberana de todos os países da zona euro, usando-a como garantia para emitir uma obrigação pan-europeia com uma tranche sénior, e uma ou mais tranches júnior. De acordo com Ricardo Reis, as virtudes simultâneas da diversificação e da senioridade implicam que a tranche sénior seria muito segura.

Isto beneficiaria Portugal de várias formas. Primeiro, o aumento na segurança e diversificação das carteiras dos bancos iria limitar a fragilidade dos sistemas bancários e o contágio das crises financeiras. Segundo, ele traria estabilidade aos mercados da dívida soberana, porque o emissor dos SBBS seria um comprador estável da dívida de todos os países. Terceiro, obviaria à necessidade de resgates e a incerteza política que lhes está associada. Quarto, porque estes ativos não exigem um novo tratado europeu e podem ser dissolvidos, eles podem ser criados de imediato.

Uma crítica habitual às propostas franco-alemãs é que pretendem usar a força dos mercados para impor disciplina orçamental aos países. Todavia, a introdução de SBBS e, bem assim, a melhoria das regras de regulação bancária, não sendo inconsistentes com uma maior imposição de disciplina orçamental, não a implicam de forma alguma. Aliás, embora muitas propostas de eurobonds tenham essa característica, tal não acontece com os SBBS. Igualmente, a viabilidade dos SBBS é independente das ações das agências de rating.

O autor explica que os ESBies seriam seguros mesmo num cenário catastrófico: imagine-se uma crise tal que, num mesmo ano, só sete países (do “Norte”) escapariam ao incumprimento. Bastaria que todos os restantes pagassem apenas, em média, 23 cêntimos ou mais por cada euro devido, para que os SBBS cumprissem na totalidade os compromissos com os credores.

Alguns como, entre nós, João Galamba argumentam que hoje os bancos portugueses beneficiam de apreciável rendimento com a dívida soberana que detêm, e retirar-lhes esse lucro substituindo-a por ESBies seria mau. Este argumento é válido, mas também é inconsistente. Não podemos querer que os bancos europeus sejam seguros e estáveis e, ao mesmo tempo, aplaudir quando eles se aproveitam da regulação — e da ausência de um ativo europeu — para assumir riscos elevados e ganhar os lucros correspondentes, até ao colapso e resgate quando chegar a próxima crise.

Finalmente, há quem defenda que os ESBies não chegam, é mesmo necessário um Eurobond. Mas este não seria mais seguro do que os ESBies por um motivo político: num cenário de crise, os países cumpridores iriam tentar tudo para evitar arcar com os custos decorrentes do incumprimento de outros.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

O Institute of Public Policy (IPP) é um think tank académico, independente e apartidário. As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não refletem necessariamente as posições do IPP, da Universidade de Lisboa ou de qualquer outra instituição.

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