Um bilhete Z2 para a arte contemporânea
Estações centrais do Metro do Porto acolhem, até 22 de Setembro, a exposição Ver as Vozes dos Artistas. É uma forma de desafiar a atenção dos viajantes para além da publicidade, acredita o curador Miguel von Hafe Pérez.
Numa parede da estação de metro dos Combatentes, um grande painel publicitário com jogadores da selecção e as cores da nação proclama que “Sonhar é humano”. Na parede ao lado, um cartaz com fundo branco, assinado por André Sousa, tem apenas um pequeno cartoon ao centro com o esboço de uma cara (dois olhos e um nariz) e um título, Morcão, que é todo um programa a apelar ao acrescento de alguma inscrição ou pichagem bem à moda do Porto.
É um confronto desigual, pelo menos à partida. Mas o projecto Ver as vozes dos artistas aposta conscientemente nisso, nessa diferença. “Na publicidade, temos uma mensagem literal, para se perceber numa fracção de segundo; numa imagem artística, o que me interessa é a complexidade, é exigir um pensamento mais profundo, diferente, saudável”, diz Miguel von Hafe Pérez, o curador deste projecto da associação cultural Maus Hábitos, co-produzido com a Metro do Porto, que desde sexta-feira passada e até 22 de Setembro “anima” sete estações centrais do metropolitano portuense.
Miguel Peréz convidou mais de quatro dezenas de artistas de 12 países para colaborarem, graciosamente, no projecto. “Na volta, e num curto espaço de tempo, recebi resposta positiva de 40, e 95 por cento dos trabalhos foram feitos para este contexto”, nota o curador, reconfortado com essa resposta “impressionante”, que entendeu como “expressão de amizade, confiança e generosidade”.
O PÚBLICO acompanhou momentos da montagem da exposição nalgumas das estações. As sete escalas do itinerário proposto pela exposição foram escolhidas por razões de facilidade logística: todas são subterrâneas, e ficam dentro da circunscrição Z2. Os cartazes (com as dimensões 1,75 x 1,25 metros e 1,18 x 0,84 metros) foram colados nas paredes mais libertas da publicidade que cada vez mais vem preenchendo o espaço disponível.
“Aqui ainda há uma semivirgindade, uma respiração de espaço, que quisemos aproveitar; nada que se pareça, por exemplo, com o metro de Paris ou de Londres, onde seria impossível fazer uma coisa destas”, diz o comissário, enquanto dirige a brigada formada por coladores de cartazes e membros da associação Saco Azul/Maus Hábitos, proponente deste projecto à administração da Metro do Porto, que esta aceitou de imediato.
Um lugar de coesão social
Miguel Pérez – que recentemente comissariou no Museu de Serralves a bem-sucedida exposição Álvaro Lapa: No tempo todo – diz-se “um grande fã do metro”. “É, de facto, um dos grandes projectos de coesão social de uma cidade”, nota, recordando “a luta que foi conquistá-lo para o Porto, no final do século passado”.
Na base desta sua intervenção na cidade está o conceito de “emergência”. “Interessa-me abordar o metro como espaço público para a afirmação da arte”, diz, sublinhando que os artistas estão cada vez menos presentes, e cada vez menos representados, no nosso quotidiano, nomeadamente nos meios da comunicação social. “Vivemos uma época estranha: os museus vêem os números de visitantes crescerem sustentadamente, os números das vendas em leilão da arte contemporânea internacional deixam-nos estarrecidos; no entanto, a presença dos artistas – e dos intelectuais em geral – no espaço público tem vindo a decrescer de modo preocupante”, escreve o curador e crítico de arte na carta de intenções do projecto.
Para contrariar esse fenómeno, Ver as vozes dos artistas traz agora ao espaço público do Metro do Porto um número assinalável de artistas, dentro do qual, ao lado de nomes emergentes, se podem encontrar figuras de referência da arte mundial – o italiano Gilberto Zorio, os espanhóis Antoni Muntadas e Ignasi Aballí, ou o holandês Mark Manders... – e nacional – de Julião Sarmento a Cristina Mateus, de Pedro Cabrita Reis aos Von Calhau!...
Alguns destes artistas decidiram afrontar directamente a publicidade espalhada pelo metro. É o caso da espanhola Cristina Lucas, que numa das plataformas da estação Heroísmo replica os slogans comerciais de várias marcas internacionais – da Nike (“Just do it”) à Gillette (“The best a man can get”) e à L’Oréal (“Because you're worth it”) –, criando com eles uma espécie de “tábua de mandamentos” comportamentais. E também do austríaco Andreas Fogarasi, Leão de Ouro na Bienal de Veneza de 2007, que faz um exercício idêntico com o lettering dos apelos turísticos de vários países: “My Russia", “Visit Sweden”, “Macedonia timeles”…
Miguel Pérez tem consciência de que “98 por cento das pessoas que circulam no metro não conhecem os artistas” cujas obras vão poder ver ao lado dos cartazes publicitários. Mas o curador acredita no “factor-surpresa”, e espera que, ao longo destes três meses, “alguma coisa, algum pensamento, alguma reflexão” possam surgir do contacto com as imagens e as mensagens disseminadas pelos artistas, algumas das quais interpelam directamente os utentes. Como o cartaz do espanhol Ian Waelder, que regista esta inscrição: “Mastigue a sua pastilha elástica entre os Combatentes e o Heroísmo, em seguida, misture com argila”; ou a proposta da portuguesa Vera Mota, que num desenho feito de palavras, Levar a cabeça aos pés, propõe uma espécie de exercício de contorcionismo visual.
A verdade é que, na véspera da inauguração, já havia três jovens adolescentes a fazerem selfies junto a dois dos cartazes no Heroísmo. E, nos Aliados, uma senhora exclamava, frente à obra do brasileiro José Damasceno: “Que coisa mais bonita!”. Soou bem ao curador: “‘Bonito’ é uma espécie de palavra tabu nos circuitos da crítica da arte; mas é bom ouvi-la, assim, nos corredores do metro.”