Roteiros de Viagem
É toda esta euforia colectiva, que se arrasta por um século ímpar na história portuguesa, que gostaria de ver transmitida de forma pedagógica e acessível a uma pluralidade de públicos
Nos primeiros anos da década de noventa do século pretérito fui assessor da Comissão dos Descobrimentos e, em simultâneo, coordenador editorial da revista Oceanos, dirigida por António Mega Ferreira. Naquele labirinto improvisado da Casa dos Bicos cruzavam-se conversas e animações, em torno da figura central do coordenador científico da Comissão, o professor Luís de Albuquerque. Um dos temas fortes dessas tertúlias animadas que juntavam colaboradores mais assíduos e outros visitantes era a consciência da falta de um lugar específico onde fosse possível transmitir o que fora esse momento único de conjugação excepcional de vontades, que permitira levar a cabo a tarefa ciclópica da aventura dos mares, o fenómeno histórico por hábito conhecido por Descobrimentos.
Instalou-se entre discussões a designação mais ou menos consensual de Museu dos Descobrimentos a atribuir a esse local, embora alguns, de quando em vez, aventassem uma designação que tinha o condão de pôr Luís de Albuquerque com pele de galinha: Museu das Descobertas. Com o humor fino que o caracterizava, e pautava sempre a informalidade dessas tertúlias improvisadas, o mestre ripostava de pronto dizendo que em Lisboa havia uma Avenida das Descobertas no Restelo, mas que essa designação resultava de haver umas moças que a subiam e desciam na tarefa diária, evidenciando dotes para atrair a clientela. Essas eram, sim, as verdadeiras descobertas. Para ele havia uma palavra portuguesa, os Descobrimentos, sendo impensável importar expressões estrangeiras, pois Les Decouvertes é uma palavra francesa totalmente inapropriada.
Embora percebendo que para alguns o termo Descobrimentos ganhara algum sentido incómodo com a investida sobre ele do Estado Novo, tornando-se quase sinónimo de Heróis do Mar/Nação valente, deixei-me contagiar pela alergia de Luís de Albuquerque à substituição por Descobertas, e ainda hoje fico com pele de galinha cada vez que a oiço pronunciar. Para quê o galicismo saloio se há uma palavra portuguesa?
O tempo passou mas a ideia acompanhou-me, continuando a pensar que seria muito importante transmitir aos portugueses em geral e aos estrangeiros de visita todo o complexo processo de arranque que permitiu realizar tal tarefa ciclópica, criando as condições para, através dos mares, confluir na unificação planetária e abrir novos horizontes à relação entre os diversos continentes. A ideia orientadora cobre portanto até meados do século XVI, quando se efectiva a ocupação territorial e subsequente colonização, com especial ênfase no Brasil, cujas coordenadas históricas, sociais e políticas são diversas. Quanto ao primeiro tempo, no século XV e metade do XVI, a que a palavra Descobrimentos se ajusta com maior propriedade, com os seus antecedentes mais ou menos longínquos, julgo positiva a focagem na componente científica, resquício sub-reptício da influência de Luís de Albuquerque, marcada pela sua condição de homem das matemáticas.
Em breve concluí que mais que a controvérsia entre os termos Descobrimentos ou Descobertas, o cerne das dúvidas centrava-se na primeira palavra da denominação, o termo Museu. Quer se queira quer não, o conceito de Museu envolve sempre a ideia do lugar onde se preservam obras de arte singulares, a partir das quais se podem construir toda a espécie de discursos, como o tem demonstrado a evolução brilhante da moderna museologia. Mas a peça essencial vale igualmente por si só, pois quantas vezes não se visitam Museus para apreciar exclusivamente uma única obra, seja de que tipo for. Quais as obras de arte que se impunha reunir como cerne de referência de um hipotético Museu dos Descobrimentos? A custódia de Belém, por exemplo, retirava-se do MNAA para integrar o novo acervo? Afinal não é ela um elemento simbólico ímpar, composta com o primeiro ouro de Quíloa que Vasco da Gama trouxe da Índia? E o resto, a cartografia, os aparelhos náuticos originais, etc. não eram indispensáveis? Um Museu dos Descobrimentos, no sentido imediato do conceito, significava assim um verdadeiro saque a inúmeras instituições sem qualquer espécie de sentido, fosse ele meramente prático, fosse teórico.
Portanto, concluía, era necessário afastar a conexão com a ideia tradicional de Museu, desencantando qualquer outra expressão que sintetizasse o que se pretendia. Isto é, mostrar em termos singelos o que se passou em Portugal, nas suas mais variadas componentes, que permitiu a conjugação única de esforços, saberes ou audácias que catapultaram toda uma sociedade, nas suas mais variadas e díspares componentes, para uma tarefa incerta e arriscada, carregada à partida de mitos e lendas adversas, de medos atávicos, e aflita com sustos escondidos na violência das águas e na solidão dos mares. E, sobretudo, centrar a atenção na evolução do processo, em que cada gesto interagia na cadeia de conhecimento, numa prática cuja principal dominante era um empenhado e constante experimentalismo. Aliás, sempre antevi que tal lugar expositivo, espécie de caverna ignota de Neptuno, deveria ser precedido por larga tarja onde se inscrevesse em letras garrafais a frase sintetizadora de Duarte Pacheco Pereira: A Experiência é a madre de todas as coisas.
Dou um exemplo, da forma mais abreviada possível. A navegação no Atlântico Sul é marcada pela predominância dos ventos alísios, correndo de Sul para Norte em determinados períodos do ano. Portanto, as viagens que o infante D. Henrique enviava ao longo da costa africana viam-se em palpos de aranha para regressar pela mesma via, sendo por vezes desviadas para o mar largo pelas correntes. Em breve descobriram que tal fenómeno era uma bênção, pois apanhavam os alísios e voltavam como que em modo de surf, à boleia da corrente favorável. E a forte orientação dos elementos obrigavam à passagem pelos arquipélagos atlânticos, em primeiro lugar a Madeira e, em seguida, os Açores. Será pois por acaso que logo em 1419, quatro anos após a conquista de Ceuta, João Gonçalves Zarco seja encarregado da tomada de posse da Madeira e Porto Santo? Não se tratou na verdade de um descobrimento, pois desde tempos imemoriais se sabia que existiam ilhas perdidas no mar largo, avistadas de quando em vez. A novidade era dispor dos elementos científicos de navegação que permitiam a sua exacta localização, e a certeza de como lá chegar em viagem directa e ser capaz de garantir o retorno sem dúvidas nem medos. O problema não era ir. Era, sim, repetir o ir e voltar.
Todo este avanço arrastado no tempo da sabedoria dos mares, que culmina com a viagem pelo golfão de Vasco da Gama, evitando de forma explícita a costa africana, é fruto de um experimentalismo constante em que participam com certeza os próprios navegadores, mas apoiado numa retaguarda variadíssima em que se misturam os homens de construção naval que aperfeiçoam a caravela, com a sua vela latina indispensável nestes mares; os cartógrafos que vão apontando meticulosamente nas cartas náuticas as novidades em catadupa; os homens das tecnologias e das matemáticas que aprimoram os instrumentos náuticos, desde o velho astrolábio árabe até ao nónio de Pedro Nunes; os botânicos e zoólogos que divulgam plantas e animais desconhecidos, como Garcia de Orta; e tantos outros que sem parangonas nem trombetas garantem a prossecução de um objectivo colectivo, atravessado de discussões vivas e querelas acesas, bem como de práticas negativas hoje tão mal vistas como a escravatura.
É toda esta euforia colectiva, que se arrasta por um século ímpar na história portuguesa, que gostaria de ver transmitida de forma pedagógica e acessível a uma pluralidade de públicos através de um discurso em que as obras de arte que enriquecem os museus se substituem por simples gestos humanos, concatenados de forma articulada numa espécie de puzzle animado que projecte o visitante de supetão no cerne de uma mundivivência irrepetível.
Que nome lhe dar? Eis a questão. Afastada a ideia de Museu por inadequada, fixei-me num termo imortalizado por D. João de Castro, um dos protagonistas que soube aliar à audácia do cavaleiro intrépido, a sabedoria do cartógrafo e, ainda, a excelência do desenho e da escrita, compondo uma das obras-primas destes tempos: Os Roteiros de Viagem. O Roteiro de Lisboa a Goa é uma obra sem paralelo, onde o autor, não se esqueça que revestido da função trabalhosa de capitão, arranjava tempo para desenhar de forma lapidar os contornos das costas, sinalizar as povoações, individualizar os tipos de embarcações, chamar a atenção para as tipologias humanas, a fauna e a flora e, ainda, registar fenómenos naturais nunca vistos por nenhum europeu, como o caso das gigantescas trombas de água. Sylvie Deswarte anota a curiosidade de a tromba de água pintada de forma empírica na obra citada seja repetida, quase como uma homenagem, numa das magníficas ilustrações da Criação, insertas no De Aetatibus Mundi Imagines de seu amigo próximo e parceiro humanista Francisco de Holanda. É este cruzamento cultural que toca a todos nessa complexa sociedade portuguesa que seria necessário plasmar num discurso multidisciplinar, que catapultasse de chofre o visitante na intemporalidade dos gestos humanos. Com os impressionantes avanços tecnológicos de hoje parece que o objectivo poderia, pelo menos, ser ensaiado.
Roteiros de Viagem é, portanto, a designação que parece mais ajustada a envolver a ideia que fica enunciada. Cada qual, com a sua crença própria, tanto pode, num lugar como este, apreciar e decifrar as viagens pretéritas em todas as suas dimensões, como pode, caso se inspire, desenhar o roteiro de viagem própria que mais lhe aprouver.