A Gandarinha que resta
Quis o engenho, e a oportunidade também, que um punhado de sintrenses inconformados não desistisse do apuramento de responsabilidades, doa a quem doer.
A novela da(s) Gandarinha, parte II (a parte I, recorde-se, decorreu no antigo palácio dos viscondes da dita, ex-Convento de Nossa Piedade, em Cascais, que hoje é centro cultural recauchutado e sede de assembleia municipal, mas cujo processo de transformação urbanística deu brado, e que brado, há algumas décadas), que ainda decorre em pleno centro histórico de Sintra, Património da Humanidade, apesar de estar quase a passar os créditos finais, promete cenas verdadeiramente tórridas nos próximos e derradeiros episódios.
Quis o engenho, e a oportunidade também, que um punhado de sintrenses inconformados não desistisse do apuramento de responsabilidades, doa a quem doer, sobre todo o novelo por que passou este ex-libris da entrada na vila velha, pelo lado de São Pedro; um processo de alterações e ampliações que tem vindo a transformar uma casa que, sendo prevista, ao que se sabe, já em finais do século XIX para hotel (!), veio a ser doada em testamento pela Viscondessa da Gandarinha a um internato e escola profissional para raparigas – Associação Católica Internacional para Obras de Protecção às Raparigas, criada no âmbito do plano de actividades da Fundação Condessa da Penha Longa, que a própria fundara desde Cucujães, terra natal do 1-º Visconde da Gandarinha –, que ali funcionaria, diz-se, até 1974.
A partir daí foi um verdadeiro corrupio de dramas: abandono, degradação, vandalismo, especulação imobiliária, projecto para lá, projecto para cá, queixas, tribunal, pronunciamentos, revenda, demolições, esventramento do subsolo, eventuais ilegalidades grosseiras ao plano de Groer e ao PDM, etc., etc., num processo tão nebuloso quanto as brumas que costumam assolar a Sintra de todos os romantismos e que terá começado por alturas do segundo mandato da então presidente da CM Sintra e hoje presidente da Comissão de Cultura da Assembleia da República.
Essa recusa em cruzar os braços de cidadãos sintrenses valorosos é tão mais valorosa quanto é sabido que a tendência generalizada de vários outros é a de baixarem os braços com um “eles é que sabem”, quando as obras continuam e quando batem na parede os apelos a quem de direito.
Ninguém contestará a mais-valia para a Sintra que todos amamos de (independentemente da previsível qualidade estética duvidosa do resultado final da nova construção para lá da fachada antiga principal) ali poder haver um hotel de 5***** (não é isso que está em causa, até pela simples razão que já o Visconde da Gandarinha o teria imaginado há mais de 100 anos) e do real (muito mais que a justificativa administrativa camarária) “relevante interesse municipal” de tal desígnio; são os meios que eventualmente não terão justificado os fins que importa contestar para que não se repitam.
Assim, todos esperamos que seja desta que as autoridades decidam cabalmente sobre todo este processo, que passou por quatro (?) presidentes de câmara, apurando pelo menos a razão de ser de coisas tão incompreensíveis quanto suspeitas:
Como foi possível à CM Sintra aprovar este projecto sabendo que o complexo da Gandarinha está adstrito à “Zona das Quintas” prevista no Plano de Urbanização de Sintra e que, portanto, não é possível aprovar novas construções acima de dois pisos, incluindo o rés-do-chão, e anexos com mais do que um rés-do-chão?
Como foi possível que uma construção desta envergadura tenha sido aprovada pela CM Sintra (foram os serviços da CM ou foi um consultor externo?), sem estudos de impacte sequer hidrogeológicos, como se a dita em nada colidisse com os parâmetros de ocupação do solo e índice de construção, e com aquela paisagem envolvente até hoje deslumbrante?
Como foi possível que de uma estimativa inicial de 46 quartos se tenha passado para 100, ou que de 76 lugares de estacionamento se tenha passado para 140 em três pisos subterrâneos (curioso como a CM Sintra acena com “lugares públicos”, como se o estacionamento viesse a ser gerido pela empresa municipal de estacionamento)?
Como foi possível à CM Sintra aprovar semelhante coisa sem haver estudos de impacte sobre o tráfego automóvel numa zona já de si susceptível de engarrafamentos, onde até, por sinal, acaba de intervir reformulando o sentido de trânsito, o que poderá ser mais um factor para o caos no local, mas também um rombo na credibilidade de quem decidiu tal coisa?
Por outro lado, como foi possível a Ippar, Igespar e DGPC terem chumbado, primeiro, reconsiderado, depois, e aprovado, finalmente, semelhante projecto que altera radicalmente a volumetria da pré-existência histórica-arquitectónica-paisagística, ignorou estudos e acompanhamento arqueológico, com a agravante da obra escavar praticamente por baixo da Igreja de Santa Maria, Monumento Nacional, e, pasme-se, acaba por subverter algo que os serviços do Estado tinham exigido que acontecesse para o aprovarem, i.e., a “manutenção da morfologia existente no conjunto, não sendo de aceitar qualquer alteração profunda ao perfil do terreno, resultante da escavação, aterro ou construção”?
E como é tudo isto possível sem que tenha havido consulta pública aos sintrenses e a todos quantos visitam Sintra, como aliás está previsto no Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação do Concelho de Sintra para empreendimentos em lotes superiores a quatro hectares? Em pleno século XXI é inaceitável que não tenha havido discussão pública.
Não será tudo isto matéria suficiente para se declarar a nulidade da aprovação do projecto? E de corrigir o que ainda se pode corrigir?
Não se irá a tempo, certamente, de recobrir com terra e árvores o buraco que ali fizeram, qual ferida a céu aberto como se de uma pedreira em paisagem protegida se tratasse, mas ainda se está a tempo de corrigir algumas coisas, quiçá e desde logo porque se é comum assistir-se a projectos que sofrem alterações no mau sentido, muitas vezes em sentido inverso ao previamente aprovado, durante a obra, é aqui possível uma alteração no bom sentido, por uma vez, já que em matéria de Gandarinha, a novela de Cascais jaz em paz: uma alteração que corresponda a uma redução da volumetria das novas construções, a mais espaço público permeável à existência de árvores, a menos carros a entrar e a sair e a poluir, a menos impacte visual na silhueta do edificado e no sistema de vistas.
Porque há também que moralizar a concorrência que há-de vir. E permitir às entidades envolvidas reganharem a autoridade perdida.
E a Comissão Unesco? Dela não reza esta crónica porque dela nem uma palavra se ouviu ou leu publicamente. Há alguém em casa ali pelas Necessidades, ou é só decoração?