Rui Vieira Nery premiou como membro do júri obra de que será um dos coordenadores
Na sua primeira edição, o Prémio José Mariano Gago de Divulgação Científica foi para Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco, pela coordenação do projecto Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. Rui Vieira Nery, que fez parte do júri e vai coordenar um dos 30 volumes do projecto, diz que não há qualquer conflito de interesses.
Rui Vieira Nery fez parte, com Miguel Lopes e Elvira Fortunato, do júri que a 22 de Maio atribuiu ao físico Carlos Fiolhais e ao historiador José Eduardo Franco o primeiro Prémio José Mariano Gago de Divulgação Científica, uma iniciativa da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), pela coordenação do projecto Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. Mas é também o coordenador de Primeiros tratados de música, o vindouro 20.º volume daquela colecção, cuja equipa reúne mais de 170 especialistas, investigadores nacionais e internacionais.
Contactado pelo PÚBLICO, o musicólogo, historiador, professor associado do departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e ainda director do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas afirma não ver um conflito entre a sua posição de jurado e a circunstância de ser um dos coordenadores do projecto. “Levantei a questão na reunião do júri e toda a gente concordou que não seria um problema. Eu próprio não vi nisso qualquer problema. O trabalho não está publicado, não é premiável. Não existe. Eu tenho uma encomenda para um volume, pode ser péssimo, quando vier a sair”, argumenta.
À data da entrega deste prémio criado pela SPA, e que tem o valor pecuniário de 2500 euros, ainda só tinham sido publicados oito dos 30 volumes deste projecto a três anos que reunirá obras fundamentais de diversas disciplinas, da geografia à gastronomia, do teatro ao direito, da poesia à física, da medicina à química e à botânica, entre outras. Ainda assim, o site da SPA especifica que o prémio, cujo vencedor foi anunciado a 18 de Maio, diz respeito “aos 30 volumes” da obra. Nery diz não estar a par das publicações do site.
Também o discurso de aceitação do prémio, publicado no blogue De Rerum Natura, que Carlos Fiolhais partilha com outros autores, refere que o valor pecuniário recebido foi “entregue ao projecto”, para poder compensar o esforço dos investigadores que nele colaboraram.
Em sucessivos telefonemas ao longo de mais de uma semana, o PÚBLICO tentou obter acesso às actas do júri. Paula Cunha, administradora da SPA, explicou que tal não seria possível, visto conterem deliberações internas sobre as obras. Questionada sobre se a SPA teria recebido alguma queixa relativa a esta situação, a mesma administradora disse ter conhecimento apenas de uma reclamação, de um candidato preterido pelo júri.
Esse tal candidato poderá ter sido Octávio dos Santos, que concorreu ao prémio com Nautas, volume editado em 2017. Na altura em que submeteu a sua obra, explicou ao PÚBLICO, não havia informação disponível nem sobre a composição do júri nem sobre o regulamento "ao contrário", assegura, "do que acontece com os prémios literários". Só soube quem tinha ganho o prémio "no próprio dia da entrega", através de um blogue.
"Fiquei intrigado com a tipologia da obra vencedora, esperava que fosse algo mais recente, não uma obra estilo enciclopédia, com textos antigos da cultura portuguesa e abrangendo algumas áreas que nem são ciências", partilha, acrescentando que também achou estranho o projecto "seguir o Acordo Ortográfico de 1990", contra o qual – "e bem", comenta – a SPA tem vindo a lutar.
Foi aí que quis contestar. "Sem grande esperança, apenas para tentar marcar uma posição", diz. Tentou obter mais informações sobre a obra e encontrou a listagem dos volumes no site do Círculo dos Leitores – o único sítio onde se pode encomendar Obras Pioneiras – e apercebeu-se do envolvimento de Rui Vieira Nery. "Custa-me a crer que as várias pessoas envolvidas não tenham percebido que haveria aqui uma incompatibilidade que me parece óbvia", afirma.
"Contactei por telefone e correio electrónico a SPA, perguntando o que iriam fazer e esperando que o resultado lógico se concretizasse, que o prémio fosse retirado", relata. Não teve grande resposta. "Informaram-me de que a mensagem tinha sido comunicada, enviada ao júri do prémio", declara. Também contactou Carlos Fiolhais. "Esperava que ele, enquanto de homem de honra, devolvesse o prémio, mas não recebi resposta."
Contrariando a informação publicada no site da SPA, tanto Nery quanto Paula Cunha reiteram que o prémio foi dado aos coordenadores da obra. "Foi dado à colecção, não individualmente. Por isso é que quem ganhou o prémio foram eles [Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco], pela direcção da obra, não foi nenhum dos volumes”, esclarece Cunha.
Nery, que também preside à assembleia geral da SPA, reitera: “O prémio é atribuído a um ou mais autores que tenham publicado uma obra de divulgação científica alargada no ano a que se refere. Neste caso, foi atribuído ao Carlos Fiolhais e ao José Eduardo Franco como coordenadores do projecto editorial tal como [ele] existe neste momento. Ninguém dá um prémio a uma obra que não existe."
"Como responsável de um volume, não tenho nada que ver com a coordenação da obra nem com o projecto global da obra, que foi o que foi premiado. Do ponto de vista ético, esta é a minha posição”, conclui.