A insustentável república dos funcionários
Faz cada vez mais falta um discurso pedagógico que mobilize a nossa consciência colectiva e nos liberte das fixações corporativas.
A bola de neve do descongelamento de carreiras na função pública, a começar pela dos professores, anuncia um fim antecipado da chamada "geringonça" ou não passará de um jogo cruzado de aparências e golpes de teatro, aproveitados pelo Governo, partidos e sindicatos para se posicionarem no terreno pré-eleitoral, à boleia do próximo Orçamento do Estado? Sejam quais forem os cálculos dos vários protagonistas, uma coisa é certa: todos ralham e ninguém tem razão.
Não tem razão o Governo porque fingiu aceitar as regras de um jogo que, afinal, não estava em condições de jogar, quando desistiu da persuasão pedagógica e alimentou falsas expectativas, ao abrir a porta à devolução integral dos rendimentos congelados dos professores mas fazendo depois apressadamente marcha-atrás, numa pirueta que se pareceu com chantagem do desastrado ministro da Educação.
Não têm razão os partidos – sobretudo os de direita, cujo oportunismo chega a atingir as raias do grotesco, especialmente o CDS, ao colar-se a uma proposta dos sindicatos da polícia sobre o respectivo descongelamento de carreiras – quando se convertem em meros instrumentos do corporativismo sindical da função pública e esquecem a natureza do seu papel mais abrangente na sociedade.
Finalmente, não têm razão os sindicatos dos professores e de outros sectores do funcionalismo do Estado que logo aproveitaram para seguir atrás deles, autocentrados nas suas reivindicações corporativas, colocando o Governo entre a espada e a parede num momento em que começam a crescer sombras no horizonte económico – interno e europeu – e quando a reversão da austeridade dos anos da troika começa a dar sinais de esgotamento.
Em tudo isto há algo que, por vezes, faz lembrar uma caminhada de sonâmbulos para o desconhecido, como se ninguém parecesse controlar devidamente os seus passos e os seus impulsos, com toda a gente a fazer de conta, a olhar para os seus interesses exclusivos ou prisioneira das aparências para não ficar mal na fotografia face aos respectivos eleitorados (efectivos e potenciais) mas também face aos parceiros ou adversários (que já se confundem, como temos visto na postura mais agressiva do Bloco e sobretudo do PCP contra os "desvios" de direita do Governo socialista).
Se Portugal recuperou uma parte da sua auto-estima, isso deve-se, em larga medida, à quebra do tabu das alianças à esquerda que pareciam interditas desde o 25 de Abril. Mas nem por isso deixámos de ser um dos países mais desiguais da Europa ou pudemos libertar-nos das contingências europeias (nem temos, entre as opções possíveis, nenhuma alternativa verdadeiramente realista e consequente fora do quadro europeu). Ora, um dos problemas mais graves com que nos deparamos é o divórcio que tende a agravar-se entre o país dos funcionários – apesar de tudo mais protegidos pelo Estado – e o país que vive por sua conta e à conta de outrem – aquele onde, precisamente, se cavam as maiores desigualdades entre os muito ricos e os muito pobres.
Manter uma república pletórica de funcionários, sempre insuficientes à luz das necessidades definidas por uma insaciável lógica burocrática – e muitos deles mal pagos, é certo –, tem custos exorbitantes que nenhum Orçamento poderá pagar se quisermos ter recursos para investir em tudo aquilo que se exige, justamente, do Estado. Faz cada vez mais falta um discurso pedagógico que mobilize a nossa consciência colectiva e nos liberte das fixações corporativas em que, para além das justas expectativas do funcionalismo, nos deixamos enredar.