E acabar de vez com as progressões automáticas?
A progressão automática por tempo de serviço, sobretudo no quadro de um Estado cada vez mais envelhecido, é um privilégio injustificável no Portugal actual.
Agradecia muito que uma alma caridosa me desse uma boa justificação para a existência na função pública, no ano de 2018, desse extraordinário conceito que é a progressão automática na carreira em função dos anos de serviço. Qual é exactamente a razão para tal mecanismo? É um prémio que a empresa dá ao trabalhador por ele se manter vivo? “Muitos parabéns, senhor Aníbal, aqui tem mais 50 euros mensais por se ter destacado a não falecer de forma exemplar ao serviço desta empresa!” Isto não tem lógica.
Anda por aí uma gritaria doida sobre se o Estado tem ou não capacidade para contar dez anos de carreira dos professores — mas a reivindicação só é um problema porque esses dez anos de senioridade docente custam muitas centenas de milhões de euros aos cofres do Estado em promoções automáticas. Ora, mais uma vez, não vejo debater aquilo que realmente importa: interessa-me pouco saber se os anos de serviço devem ou não ser contados; importa-me muito saber se faz algum sentido que o tempo a exercer uma profissão se traduza em aumentos automáticos de vencimento, quer o trabalhador se tenha comportado de forma exemplar, quer tenha sido uma lástima.
A minha resposta a este estado de coisas é um rotundo “não”. Não, não é justo. As progressões automáticas deveriam ser exterminadas de vez — houvesse coragem para isso, que obviamente não há. Esta é mais uma das inúmeras injustiças que distorcem o mercado laboral neste país e que ignoram a importância do mérito. Note-se: eu compreendo que uma empresa (ou um ministério) premeie os anos de serviço dos seus melhores trabalhadores, já que tem interesse em continuar a contar com eles. A experiência acumulada é evidentemente um valor. Mas não é um valor só por si. Ou seja, não é um valor independentemente de quem o pratica. Um bom professor com muitos anos de experiência é uma mais-valia para qualquer escola. Um mau professor com muitos anos de experiência é apenas alguém que prejudicou a escola durante imenso tempo — qual é a razão para ele ser premiado por isso?
Pior: a impossibilidade de despedir os funcionários públicos, em conjunto com a impossibilidade de não promover certos funcionários públicos, é uma estátua ditirâmbica à absoluta mediocridade. Um óptimo professor com 30 anos tem alta probabilidade de ganhar muito menos do que um péssimo professor com 50 anos. As chamadas “carreiras especiais da função pública” — professores, enfermeiros, polícias, militares, funcionários judiciais, ou seja, grupos de pressão que convém engraxar — beneficiam de privilégios únicos e profundamente injustos. Nessas “carreiras especiais” as progressões dependem sobretudo do tempo de serviço (ainda que nalguns casos possam existir modelos de avaliação), enquanto a progressão nas “carreiras gerais” (tal como em todo o sector privado, já agora) tem como base sobretudo a avaliação de desempenho.
Há gente que gosta de pedir “exemplos concretos” sempre que se fala em reformas estruturais, em particular na função pública. Pois aqui está um. A progressão automática por tempo de serviço, sobretudo no quadro de um Estado cada vez mais envelhecido, é um privilégio injustificável no Portugal actual. Qualquer pessoa consideraria ridículo que o número do cartão de cidadão de um indivíduo servisse para aferir a sua qualidade profissional. Mas as progressões automáticas são precisamente isso — quanto mais baixo o CC, maior o ordenado. É iníquo. É discriminatório. E é aberrante.