O Estado de direito em implosão na União Europeia
Desde 2010, a partir do Leste, tem alastrado o vírus do populismo que vai minando a independência judicial. A tudo isto assiste impotente a Europa.
Com o colapso do bloco do Leste e a adesão dos países que saíram do totalitarismo comunista, a UE é hoje constituída por 40% de Estados provenientes dessa área político-geográfica. Um dos grandes benefícios desse alargamento foi levar os valores fundamentais da UE a todos os povos da Europa: dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de direito e respeito pelos direitos humanos e das minorias. É este cimento que pode garantir paz duradoura e prosperidade social e económica.
Porém, desde 2010, a partir do Leste, tem alastrado o vírus do populismo que vai minando a independência judicial — pilar fundamental da democracia e do Estado de direito. Na Hungria, a exploração de ideias pré-concebidas e de fácil aceitação popular (privilégios dos juízes, falta de responsabilização democrática, ineficiência do sistema e desconfiança social) permitiu desmantelar a independência, à vista de toda a Europa. O poder político “ocupou” o Conselho Nacional da Justiça. Os presidentes dos tribunais, nomeados pelo poder político, controlam os juízes com sanções disciplinares e redução dos salários. As decisões incómodas do Tribunal Constitucional foram revogadas por acto legislativo e as suas competências reduzidas. No Supremo Tribunal o presidente foi destituído e muitos juízes substituídos.
Na Roménia, a situação é semelhante. Os serviços secretos têm uma fortíssima interferência no funcionamento dos tribunais. Recolhem e tratam informação sobre a vida profissional e pessoal de juízes e procuradores, que é usada para chantagear e pressionar. O resultado disso é chocante, mas não surpreende: mais políticos investigados por corrupção absolvidos.
A Polónia caminha na mesma direcção. O ministro da Justiça acumula as funções de procurador-geral. Cento e cinquenta presidentes de tribunais foram arbitrariamente demitidos. Os juízes “incómodos” dos tribunais superiores foram destituídos. No Conselho Superior Judiciário os juízes passaram a ser nomeados pelo Parlamento. O Governo colocou cartazes nas ruas a acusar o poder judicial de corrupção e ineficiência. As decisões do Tribunal Constitucional contrárias à vontade do Governo são publicadas no diário oficial com uma nota a dizer que estão erradas.
A tudo isto assiste impotente a Europa. Os governos europeus não parecem muito incomodados: uns porque acham que não lhes diz respeito; outros porque aguardam pacientemente na fila a sua oportunidade. As opiniões públicas alheiam-se e não reagem. O procedimento por incumprimento do tratado iniciado contra a Polónia é um beco sem saída. Qualquer sanção precisa de unanimidade e a Hungria já fez saber que vetará tudo. O primeiro vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, confessando a impotência política da UE, disse há dias em Berlim, numa reunião da Associação Europeia de Juízes, que a única esperança para travar este desmoronamento está agora no Tribunal de Justiça (TJUE).
E isso é verdade. Uma juíza na Irlanda recusou cumprir um mandado de detenção europeu contra um cidadão polaco, argumentando que a Polónia não é um Estado de direito. O TJEU vai analisar a questão nas próximas semanas. Se decidir que a Polónia não cumpre as regras de independência judicial do tratado, fica imediatamente aberta a porta para a aplicação de sanções e de mais pressão política. Outros países pensarão duas vezes antes de seguirem as mesmas pisadas. Mas se disser que está tudo bem, então é de esperar o alastramento do vírus. De repente, um terço ou mais dos países da UE podem simplesmente atirar os princípios do tratado para o lixo.
E Portugal? Alguém já ouviu os políticos preocupados com a Polónia? Muito provavelmente estão na fila, a assobiar para o lado, à espera de ver se acontece alguma coisa. Vontade de ir atrás não há-de faltar. O discurso populista de que o problema da Justiça é os juízes e os procuradores não serem mais controlados anda por aí, disfarçado nas entrelinhas do que vão dizendo o PS e o PSD — o tal “bloco central de interesses” contra a Justiça a que se referiu o Presidente da República (Centro Cultural de Belém, 7/9/16). Se surgir a oportunidade, “junta-se a fome à vontade de comer” e avançam pela independência dentro com conversa de embalar — que o povo é mais futebol e outras coisas.