Fundos europeus: porque é que a Espanha ganha 5 e Portugal perde 7?
Portugal está em jogo; mas não é apenas Portugal que está em causa. É mesmo uma visão global do desenvolvimento europeu e das suas prioridades.
1. A Itália e a Espanha estiveram debaixo dos radares na semana que passou. Estiveram sob os holofotes por razões ligadas à situação política interna e à projecção que as suas mudanças políticas terão na paisagem europeia. Muito haverá a dizer, mais sobre a situação italiana do que sobre a espanhola. Tanto num caso como no outro, todavia, é ainda cedo para perceber as verdadeiras implicações nacionais e europeias desta enorme transformação.
Mas esta semana a Itália e a Espanha foram também notícia por uma outra razão, muito relevante para a Europa em geral e para Portugal em particular. E essa razão foi a apresentação pela comissão do Quadro Financeiro Plurianual (MFF), conhecido por perspectivas financeiras para 2020-2027. Esta proposta consubstancia basicamente a estratégia de convergência e de coesão da União até 2027 (na prática, até 2030). Tendo em conta que o "Brexit" acarreta uma diminuição de receitas – o Reino Unido era um contribuinte líquido – e que há novas prioridades políticas para a União (migrações e defesa, por exemplo), era expectável que o orçamento da coesão, na sua globalidade, sofresse uma redução. Compreender-se-ia, por isso, que os vários países de coesão pudessem sofrer uma pequena quebra, ainda que ela devesse ser proporcionada ao grau de desenvolvimento e de riqueza de cada qual. Mas não foi isto que aconteceu. A proposta da Comissão, apesar da redução do bolo orçamental, aumenta em 5% os fundos que cabem à Espanha e em 6% aqueles que cabem à Itália. A Itália e a Espanha são as grandes campeãs do "Brexit"! O orçamento da coesão baixa, mas o encaixe de fundos destes dois países sobe! As economias italiana e espanhola estão muito mais próximas da média europeia do que a lituana, a húngara ou a polaca que – pasme-se! – perdem 24% e 23% dos fundos. A Itália está quase 20 pontos acima de Portugal e a Espanha mais de 10; no entanto, elas recebem mais 6% e 5% do que no quadro anterior, enquanto Portugal cai 7%!
2. A Comissão enredou-se em explicações de natureza técnica e o Governo refugiou-se, tímido, cândido e sonso, num suposto progresso. A pergunta que tem de se fazer e que, em especial, alguém que representa os cidadãos no Parlamento Europeu tem mesmo de fazer é: afinal que convergência é esta? Para onde vai a coesão depois de 2027? Vai aprofundar o fosso entre a Croácia (que desce 6%) e a Itália (que sobe 6%) ou entre a Estónia (que desce 24%) e a Finlândia (que sobe 5%)? Portugal está em jogo; mas não é apenas Portugal que está em causa. É mesmo uma visão global do desenvolvimento europeu e das suas prioridades. Quem olha para o orçamento, que vê? Vê que, em rubricas, das quais normalmente beneficiam os países mais ricos, há aumento de verbas. E vê que, mesmo nas rubricas da coesão, são adoptados critérios que beneficiam os países que estão mais próximos da média europeia em detrimento dos países mais pobres. Como explicar esta deriva que potencia a divergência? Como explicar essa tendência, quando todos os sinais apontam para que a reforma da zona euro será tímida e, portanto, só as políticas da convergência poderão minorar os desequilíbrios que as suas regras fomentam? A Comissão, que devia velar pelo interesse geral, apresenta uma proposta que é dificilmente digerível.
3. A Comissão refugia-se na ideia de que aplica os critérios que sempre aplicou, mas nunca explica porque cortou em 45% o fundo de coesão, que justamente corrigia esses critérios. E depois, com enorme desfaçatez, vem dizer que os países que perdem fundos devem dar-se por muito satisfeitos, pois a perda de fundos é sinal de que melhoraram a sua situação económica. Eis um raciocínio absolutamente insustentável. O facto de um país ter estado numa linha de crescimento não significa que não esteja muito distante dos outros e, por conseguinte, a carecer de incentivos para a convergência. Especialmente, não impõe que os fundos de convergência sejam afectados a países bem mais ricos, só porque não cresceram tanto. Por outro lado, dá um sinal errado: se um país pobre promove políticas de crescimento, ainda que esteja longe da convergência, leva com um corte de fundos. Será que na Comissão ninguém se pergunta qual o papel que os fundos do quadro anterior tiveram nessa trajectória de crescimento?
4. Trata-se de uma proposta inaceitável. Infelizmente, a imprensa portuguesa, hoje submersa em futebol, não dá visibilidade à questão, acomodando-se à narrativa da Comissão e do Governo. Felizmente, o Parlamento Europeu, muito por influência do nosso colega José Manuel Fernandes, não se conforma com esta abordagem, com a sua irracionalidade, com a sua injustiça. O Governo português não tem sequer a desculpa de não ter a solidariedade do PSD, que nesta precisa matéria fez um acordo de regime. E aí se estabeleceu um objectivo de que estamos longe: manter o mesmo nível do quadro anterior (faltam 1600 milhões de euros). Se o Governo não é capaz de negociar a nossa posição, tem de ser responsabilizado por isso. Diferente seria se todos os países perdessem algo e se nas percentagens de diferença se discernisse um módico de racionalidade. Como podemos explicar aos cidadãos portugueses, depois do que passámos com a troika, que um país como a Espanha, nosso vizinho e bem mais rico, a crescer mais de 3% ao ano nos últimos 3 anos, aumenta os fundos que recebe em 5%? Que países como a Roménia ou a Bulgária ou até a Grécia – que tanto tem sofrido – tenham um quadro mais favorável, qualquer europeu de boa-fé compreenderá. Mas que Portugal fique bem atrás de potências económicas como a Itália e a Espanha em que se vive nitidamente melhor, não há como perceber.
Portugal até pode terminar a perder fundos e a perdê-los injustamente. Mas que a Comissão e o Governo não façam o que fizeram na semana passada: omitir e mentir. Os cidadãos e os eleitores merecem a verdade. E se a Europa já não aposta da mesma forma na convergência, ele merecem saber. E têm de saber.
SIM. Padre Rui Osório. Sacerdote católico, jornalista, um justo que fez da justiça social, tirada dos evangelhos, a sua causa. Como na bem-aventurança lida nas suas exéquias: tinha mesmo fome e sede de justiça.
SIM. Franco Carlucci. Figura controvertida, o embaixador americano em pleno PREC, acreditou sempre que a democracia poderia triunfar contra a deriva comunista e militar. Bendita convicção.