Coesão e competitividade territorial: oportunidade ou conflito?
Ainda que todos desejemos maior coesão territorial, valorizar o “interior” através da imposição de políticas públicas de natureza geográfica binária do tipo sim/não pode produzir mais efeitos nefastos do que desejáveis.
As medidas apresentadas pelo Movimento pelo Interior (MPI) no passado dia 18 de Maio, e que podem ser lidas em detalhe no seu relatório disponível online, têm gerado atenção nos principais meios de comunicação social. O relatório tem como objetivo a “identificação de políticas públicas de natureza radical e discriminatória a favor do “interior”” e contém 24 medidas agrupadas em três domínios: política fiscal; educação, ensino superior e ciência; e ocupação do território pelo estado.
Estas medidas surgem no contexto do Programa Nacional para a Coesão Territorial (PNCT) preparado pela Unidade de Missão para a Valorização do Interior (UMVI), criada no final de 2015 com o propósito de inverter o declínio populacional do “interior”. Segundo o relatório do MPI, “entre 1960 e 2016 a população residente no litoral aumentou em 52,08%, enquanto no “interior” diminuiu em 37,48%.” A atribuição do despovoamento do interior à litoralização do território oculta outras transformações importantes ocorridas nesse período, nomeadamente a bipolarização nas duas áreas metropolitanas em simultâneo com uma crescente suburbanização. Consequentemente, também no litoral se observou um forte despovoamento dos territórios centrais das áreas metropolitanas. No caso da Área Metropolitana de Lisboa, entre 1960 e 2016, a população residente no concelho de Lisboa caiu 38%, enquanto a população dos concelhos periféricos circundantes aumentou mais de 200%.
Os processos de desenvolvimento regional são complexos e a sua discussão, seja entre especialistas ou a sociedade civil, geralmente exaltada. As posições dividem-se em função do maior ou menor valor atribuído ao princípio da equidade e justiça territorial, evidenciando um provável conflito entre competitividade e coesão. Os economistas diriam tratar-se de um caso clássico de trade-off entre eficiência e equidade. Mas será mesmo? A resposta, como já se adivinha, não é fácil. Abordo aqui dois dos principais problemas a ter em consideração.
O primeiro problema é a delimitação dos territórios do “interior” enquanto geografia do problema e, por pressuposto, da solução. Esta decisão não é inócua seja qual for a definição de “interioridade”. O conceito utilizado pelo MPI já não corresponde, e ainda bem, ao binómio urbano-rural, mas também não explica a relação entre densidade populacional e accessibilidade. Assim, temos cidades do interior fora do “interior” (ex. Viseu) e áreas rurais do litoral dentro do “interior” (ex. Alentejo litoral). O papel catalisador das aglomerações urbanas do interior - as cidades de pequena e média dimensão - no desenvolvimento das regiões que as englobam fica assim despercebido. Esta omissão importa pelo menos por dois motivos. Primeiro porque a ausência de cidades médias com dimensão económica regional alargada é um dos entraves a uma maior equidade e competitividade territoriais. Segundo, porque estamos em plena discussão pública do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) e a questão da articulação das aglomerações urbanas de menor dimensão com as áreas rurais envolventes é central ao debate sobre o modelo de desenvolvimento territorial do país.
O segundo problema é a ausência de discussão dos possíveis efeitos contrários não intencionais das medidas propostas, e que resulta da necessidade de distinguir entre o sintoma e a causa do problema alvo de intervenção pública. A causa do despovoamento do “interior” parece ser atribuída à litoralização do território, e não à falta de competitividade desses territórios. Na realidade, é mais provável que a falta de competitividade seja a causa do problema, sendo a litoralização apenas um sintoma do mesmo. Entre as medidas discriminatórias a favor do “interior” assumem relevo os benefícios fiscais às empresas (ex. alargamento do IRC 12,5%, exclusividade do regime contratual e do código fiscal de investimento) e a exclusividade para o “interior” do atual regime especial de IRS com vista a atrair do litoral ou estrangeiro indivíduos altamente qualificados. As vantagens financeiras para as pessoas (que trabalhem no setor público) são ainda majoradas por uma série de medidas para a ocupação do território pelo Estado: subsídio igual a um salário anual, aumento em 25% do tempo de contagem para progressão da carreira, aumento em 10% da contagem de tempo de serviço para a reforma, e duplicação dos subsídios de parentalidade e abono de família.
Algumas destas medidas poderão gerar percepções de injustiça social entre recém-chegados oriundos do “não-interior” e os residentes do “interior”, criando uma espécie de duas classes de cidadãos. Além disso, as medidas podem não ter o impacto desejado na economia dos territórios do “interior” devido a possíveis “efeitos de fronteira”. Primeiro, a mudança de residência fiscal para o “interior” sem abdicação de habitação secundária fora deste não reduz necessariamente a pressão da procura habitacional urbana, mas aumenta a pressão sobre a procura habitacional no “interior”, podendo aumentar o seu custo. Segundo, a alteração da residência primária do “não-interior” (ex. Setúbal) para o “interior” (ex.: Alcácer do Sal) à custa de movimentos pendulares mais longos terá como resultado um aumento da suburbanização e logo uma ocupação do território mais ineficiente e insustentável. Em relação aos benefícios fiscais às empresas que se mudem para o “interior”, a evidência empírica existente indica que o sucesso destas medidas tende a ser limitado e é condicionado pela reversibilidade das medidas.
Em conclusão, ainda que todos desejemos maior coesão territorial, valorizar o “interior” através da imposição de políticas públicas de natureza geográfica binária do tipo sim/não – “interior” vs. “não-interior” – pode produzir mais efeitos nefastos do que desejáveis.