“Esfolei os joelhos e recusei usar saias, mas nunca deixei de ser a princesa da minha mãe”

Autores da campanha “Opte por amar mais” mostram-se estupefactos com acusações sobre perpetuação de estereótipos de género. CIG também lamentou em comunicado o recurso “aos estereótipos discriminatórios”.

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Nem por um minuto passou pela cabeça do realizador André Badalo que a campanha antitabágica “Opte por Amar Mais”, da Direcção-Geral da Saúde, que visa incentivar as mulheres a deixar de fumar, suscitasse um pedido de suspensão fundamentado na alegação de que perpetua estereótipos de género. “As pessoas perderam completamente a noção? As mães e as primas e as tias que nunca chamaram princesa a uma miúda de oito anos que se levantem e que se acusem. Desde quando se tornou ofensivo dizer, numa festa ou num jantar, ‘Olá, princesa, estás tão bonita’?”, indignou-se ao PÚBLICO o realizador, lamentando que a discussão em torno da campanha se tenha desviado para o problema dos estereótipos e da desigualdade de género quando devia estar centrada em três palavras: “Fumar faz mal."

A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) emitiu ao final da tarde desta sexta-feira um comunicado. Lamenta o recurso a "estereótipos discriminatórios, os quais são igualmente prejudiciais à vida das mulheres e dos homens na nossa sociedade”. E confirmou ter recebido queixas da associação feministas Capazes, do Movimento Democrático de Mulheres e também da UMAR — Associação União das Mulheres Alternativa e Resposta, além “de outras manifestações a título pessoal”. Todas unidas em torno da ideia de que o Estado está a promover uma campanha sexista que reduz as mulheres ao papel de mãe e de princesa.

Já antes o BE apelara à alteração da campanha, porque centrar a prevenção do tabagismo “no papel da mulher mãe, que se deve sentir culpada pelo mau exemplo que está a passar à filha, é sexista e culpabilizador da mulher”.

BE: “Simplificação perigosa”

Acresce, segundo os bloquistas, que o filme da polémica campanha incorre numa “simplificação perigosa” do acto de deixar de fumar, reduzindo-o a uma questão de vontade, quando é, na realidade, um processo “árduo e complexo”. Mais contundente, a deputada do PS Isabel Moreira pediu a retirada de uma campanha que qualificou como “inadmissível”, “misógina e culpabilizante das mulheres”.

Beatriz Moreira, uma das duas jovens de 18 anos, alunas da Escola Profissional de Artes, Tecnologias e Desporto, que idealizaram a campanha, mostra-se estupefacta. “Essas pessoas que se consideram feministas são na verdade aquelas que mancham o nome ‘feminismo’. Eu, mulher e feminista, durante a minha infância brinquei com rapazes, esfolei joelhos e recusei usar saias, mas nunca deixei de ser a princesa da minha mãe, do meu pai e dos meus avós”, declarou.

A outra co-autora do argumento, Fátima Ferraz, diz-se “magoada” pelos comentários que o pequeno filme suscitou. “Quando dizemos ‘Opte por amar mais’, o que queremos é dizer que as pessoas devem cuidar de si; pensar mais no valor da sua própria vida”, explicitou, dizendo-se indisponível para refazer a campanha.

Na campanha, a actriz Paula Neves interpreta o papel de uma mãe com cancro do pulmão que não consegue deixar de fumar e que se dirige à filha para lhe recomendar “Uma princesa não fuma”. A criança vestira-se com uma tiara e um tutu de bailarina para a festa de aniversário que lhe preparara e esse foi um dos problemas. “Por que é que não se optou por mostrar que uma mulher forte, empoderada, não fuma?”, contrapõe Catarina Correia, vice-presidente da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens.

“A campanha deve ser retirada, porque vai tudo aquilo a que o Estado português está obrigado e que é a promoção da igualdade de género”, acrescentou, acusando o Governo de “dar uma martelada em direitos que têm vindo a ser conquistados a muito custo”, ao optar por “perpetuar o discurso de que as meninas nasceram para serem princesas”. “O que é que queremos? Que as meninas não fumem quando crescerem porque são princesas ou que não fumem porque se tornaram mulheres fortes e empoderadas?”, questionou.

Trata-se de raciocínio “desajustado”, para André Badalo. “As críticas mais tolas que ouvi diziam que vivemos numa república e não numa monarquia. E que devíamos chamar à criança guerreira e não princesa. Isso significaria o quê, então? Que estávamos a incentivar a obrigatoriedade das mulheres fazerem o serviço militar, como em Israel?”, insurge-se o realizador, para quem tais reacções provam que “a campanha é realmente forte: uma pedra que caiu no charco”.

Recusando “entrar no julgamento público”, o presidente da Confederação Portuguesa de Prevenção do Tabagismo, Emanuel Esteves, diz recear que esta polémica faça eclipsar o objectivo primordial da acção: “O que era essencial nesta campanha era lutar contra o tabagismo, nomeadamente entre as mulheres, os seus efeitos e consequências. Preocupa-me que isso se perca.”

Actriz "voltaria a fazer este papel"

A directora-geral de Saúde, Graça Freitas, já veio admitir alterações à campanha, “se se verificar que é útil”, sem deixar de lembrar, porém, que esta visou as mulheres por ser entre estas que o consumo de tabaco mais aumentou. Ao PÚBLICO o gabinete de imprensa do Ministério da Saúde limitou-se a frisar que “a campanha está no ar”, sem adiantar mais.

A actriz Paula Neves lembra, por seu turno, que a campanha “não pretende generalizar nem definir todas as crianças como princesas”. “É um nome carinhoso que tanto pais como mães usam com as suas filhas. Não pretende condicionar ninguém, mas apenas reflectir uma realidade que nem sempre é aquela que as pessoas gostariam que fosse”, declarou, dizendo-se “muito orgulhosa” e garantindo que “voltaria a fazer este papel, mostrando a ferida tal como ela é”.

 

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