Um bando à parte
Têm entre 19 e 23 anos, cresceram em Odivelas, Setúbal, Seixal, Lisboa, Telheiras, com fome de saber muito, rápido e bem. A música que fazem evolui a um ritmo impressionante e ainda está só a começar.
Estamos no Zaratan, Associação Cultural na Rua de São Bento, Lisboa, ao lado da Assembleia da República. É dia de lançamento de um novo trabalho da Rotten \\ Fresh, Strel, de Simão Simões, um de seis artistas presentes actualmente associados a esta editora que arrancou no início de 2017, pela mão de Diogo Oliveira, o sétimo presente para o evento e para uma conversa com o PÚBLICO.
A Zaratan, criada em 2014 para apoio independente à arte contemporânea, é um de alguns espaços que têm dado palco às novas levas de música electrónica mais e menos abstracta, produzidas na grande Lisboa, Margem Sul e subúrbios. Juntamente com o Desterro, no Intendente, ou o Banco, na Zona da Sé, é dos mais dinâmicos e receptivos locais para concertos de música de formas menos obviamente funcionais a surgir em Lisboa. Todos eles com espaço para não muitas pessoas, com um som digno dentro das suas possibilidades financeiras, mas vontade de ver coisas outras a acontecer.
Têm sido as casas principais para a actividade ao vivo Rotten \\ Fresh, que até à data publicou em formato digital e CD-R oito lançamentos, e terá ainda mais dois até final deste ano. Gente entre os 19 e os 23 anos, que cresceu em Odivelas, Setúbal, Seixal, Lisboa, Telheiras, com fome de saber muito, rápido e bem. Têm uma bagagem cultural delirantemente desenvolvida, realmente ecléctica e de mente aberta, avessa a regras de bom/mau gosto, alta e baixa cultura. São ultra-analíticos e exactos, têm piada; são frontais e carinhosos uns com os outros. São amigos. Adoram música. E a música que fazem, que evolui a um ritmo impressionante, ainda está só a começar.
A história desta empreitada arranca entre 2011 e 2012, quando Diogo e Luan Bellussi se conhecem e começam uma publicação online para partilharem música que gostavam, fazerem críticas a discos e a concertos. Todos eles parecem ter-se conhecido sempre à volta da música, e desenvolvido e mantido relações a partir daí, até terem chegado ao momento de fazerem parte fraterna desta chancela que os une. Os pontos de encontro variavam entre concertos de anarco-punk, Dean Blunt ou free jazz, e esse tipo de pluralidade de interesses em todos eles não só se manteve como parece continuar a expandir-se.
Foram publicando trabalhos sempre em formato digital, através do Bandcamp ou do Soundcloud, mas no fundo a conta não poderia ter sido mais simples. Diogo: “Gosto de ter CD em casa, gostava da música que os meus amigos estavam a fazer e queria ter CD deles todos”, para além do digital. Manufactura ainda mais simples, mesmo que os acabamentos sejam bons para uma “estrutura” tão frugal: “esplanada da minha faculdade, régua de metal, x-acto, cola UHU comprada no chinês” para montar as capas bem impressas, e um CD-R com autocolantes transparentes com o logótipo da editora em cima. Mas “depende do que o artista quer. Eu estou sempre aberto a todo o tipo de iniciativa. Deixo sempre o artista escolher o que é que pretende para o álbum”. Benjamim Castanheira, outro do bando, “masteriza” os discos. O nome vem do primeiro LP dos Dead Kennedys, Fresh Fruit For Rotting Vegetables (1980), “mas ninguém decorava” a tentativa inicial de reproduzir o nome na íntegra.
Trash can, império pacífico
“A minha relação com a música começou com a Internet. Sempre tive num contexto muito fechado, mainstream, sem acesso a praticamente nada”, diz Luan Bellussi, responsável pelo projecto Trash Can e por metade do duo Império Pacífico, com Pedro Tavares. “Nasci no estado de São Paulo, vim para cá [Setúbal e Portugal] com oito anos. A minha família é de uma classe média baixa, nunca tivemos nenhum tipo de relação com a música. A Internet funcionou como uma ponte, por iniciativa mais ou menos própria. Muita pesquisa, muito fórum anónimo”. Descobre os Radiohead, a “banda favorita” dele pelo amigo Tomás, nome artístico Tsuri, que tem tocado bastante e bem por Lisboa nos últimos tempos, e a partir daí e dos seus amigos foi descobrindo aquilo a que ele chama “sites de descobrir música”, como o rateyourmusic.com, que é o seu favorito. “É muito fixe porque podes ir mesmo aos géneros especificamente que tu queres e não só descobrir os fundadores, como os lançamentos mais importantes desse determinado género. Aprendi sobre o vaporwave aí”.
Nome e género musical, como sempre inventado por jornalistas com necessidade de protagonismo e objectivos académicos, é inicial e basicamente o produto de dois trabalhos. Daniel Lopatin/Oneohtrix Point Never, hoje figura de culto na electrónica simultaneamente revisionista e futurista, criou o heterónimo Chuck Person, e lançou Eccojams Vol. 1, disco de referência para vários dos artistas da editora, num movimento que também foi muito influenciado pelo brilhante Far Side Virtual de James Ferraro, também nos primórdios deste vocabulário cáustico, distante, melancólico, neonostálgico que bateu em tanto miúdo a crescer em subúrbios pelo Ocidente (& além).
Tendo em conta este tipo de percurso, pergunto-lhe se lia jornalismo musical, ou se ia por esse tipo de vias para conhecer música nova. Luan: “Os sítios que frequentava eram muito contrários à crítica, havendo uma relação antagónica com o jornalismo e com a crítica musical. Da perspectiva de ‘eles estão a dizer errado, aquilo de que eles dizem mal é que é bom, e o que eles dizem que é bom é mais ou menos. Os sítios que eu frequentava já são quase um magazine a idolatrar demasiadas personagens [em oposição] a exactamente ser contrário. De ‘não gosto daquilo que as pessoas que percebem de música gostam’ [risos]. Viemos mais ou menos todos daí, não? Dessa contracultura à contracultura”. Alguns dos presentes concordam.
“A nível de fazer música, utilizava o Ableton Live 8, só para experimentar. Na altura queria fazer o que o Lopatin fazia [como Chuck Person] misturado com samples da minha cidade”. Criou um heterónimo, mas como sentiu que “não era bom o suficiente”, inventou “um projecto paralelo, que seria um descarte para aquilo que achava que não era bom o suficiente, que é o Trash Can”. Misturando samples do YouTube, sintetizadores de que gostava e samples que gravava no quotidiano, começa a desenhar as estruturas composicionais livres do projecto. Começou a tocar ao vivo no trabalho, no armazém da loja de cosméticos da mãe em Setúbal, onde fazia performances neoconcretistas com rádio e mesa de vidro + x-acto. É dele o maravilhoso Nova Vista, primeiro lançamento da editora.
A dada altura, este processo começa a cruzar-se com Pedro Tavares, nos primeiros dias do que se iria tornar o Império Pacífico. “Passávamos tardes, tardes e tardes, passávamos muito tempo num café que é o Império. Era um sítio muito liberal, podias fazer o que quisesses, desde que respeitasses a identidade do sítio”. A música do Luan é como estas palavras; cientes, com ética, poesia, e bonitas.
Funcionário, império pacífico
Cara-metade do Luan em Império Pacífico, Pedro Tavares nasceu em 1997. Juntos, arrancaram a nível de lançamentos digitais e actuações ao vivo, com a promotora/editora Alienação, de Afonso Ferreira e João Melgueira. Mas por detrás disso, Pedro desenvolve as ideias do Luan. “Trabalhamos muito em conjunto. Posso dizer que somos uns grandes amigos desde aí e daqui para a frente. 2012-13 começa tudo. Eu começo a fazer música a solo. Gosto de trabalhar imensas coisas. Tenho álbuns que vão desde ambient até música que se pode considerar trap experimental. Tinha andado a ouvir muito Hype Williams. A minha música baseia-se muito nas experiências que tenho, nas pessoas que já estiveram connosco, principalmente comigo e com o Luan”.
Para além do supramencionado Chuck Person e de Laurel Halo, que adora, fala de referências nacionais realmente inesperadas para qualquer geração de músicos portugueses nascidos da década de 90 para a frente, casos de Nuno Canavarro ou Carlos Maria Trindade (Corpo Diplomático, Heróis do Mar, e o seu recente Oriente), como inspiração.
O seu 2222 na Rotten \\ Fresh é tratado personalizado das várias correntes subversivas da música electrónica construtivamente pós-moderna da segunda metade deste século, desmontando e remontando vários organismos e léxicos musicais, dando-lhes segundas vidas, para lhe servir os seus ímpetos progressistas, sem rótulo. No fundo, o grau de coragem na escrita da música e estética de Pedro surge-lhe quando fala: “Eu digo [que o que faço é] ambient porque não tenho outra palavra melhor mesmo”. Territórios novos = saúde.
Simão Simões
Simão conta que cresceu a ouvir “Zecas e Zé Mários no carro” com os pais em Lisboa. Na sua própria visão narrativa de como foi evoluindo através da música, fala que começou a “explorar coisas um bocado mais fora da norma” quando começou a ouvir metal, quando perdeu “o estigma que ‘é tudo barulho, é tudo merda’”.
Estranhamente, ou não (isto é o futuro), chega aos clássicos Slayer porque os Sunn O))) tinham uma cover deles. A partir desse tipo de versões mais extremadas a nível de pressão sonora e noções estruturais, começa a “explorar os ramos da música experimental”. Só agora comecei a ganhar um bocadinho mais de vontade de fazer mais música sozinho. Um bocado uma cena de competitividade. O Ben [Benjamim Castanheira] faz uma música do c****** e eu penso: ‘Vou agarrar numa cena que ele está a fazer e vou fazer isto, mas melhor’. Competição sem nenhuma competição lá, mas dentro de mim quando vejo um concerto de alguns de nós tenho que fazer one-up”.
[alguns concordam, há um debate económico e produtivo que rapidamente se arruma]
No seu novo trabalho, estreado no dia da entrevista, Strel viaja a nível de inspirações entre “Laurel Halo, Orbital, Oval, e também influências mais extramusicais, de cenas de videojogos, de vídeos de ASMR [vão ao Google, não perguntem que não há espaço aqui, s.f.f.] de YouTube rasca”. Vêem-se sombras do ideário nipónico digital-psicadélico, anime, passando por Foodman, Nobukazu Takemura e outros nerds metafísicos a sério. Na Zaratan, amigos e aliados dançam na apresentação do disco, com fontes sonoras sem mácula, desenho narrativo maturado e pureza inquestionável. Simão é jovem mestre, e terá feito o disco mais bem acabado da editora até aqui. “Esta aqui é a primeira coisa que alguma vez fiz que eu sinto ser uma coisa séria”.
Passamos para o existencial-sociológico. “Acabas por chegar a nichos e acabas por encontrar uma comunidade de milhões de pessoas. Acabas por estar sempre num safe space digital com pessoas do teu nicho à volta. Acho que isso é uma coisa que nos influencia a todos na música que fazemos. Estamos a fazer música para nós, qualquer um de nós”, e isso ajuda a “saberes o que queres fazer, o que te interessa”.
Unitedstatesof
“Sou do Seixal, também é da Margem Sul”. João Rochinha antecipa-se na ordem da direcção dos ponteiros do relógio de entrevistas, porque já está atrasado para ir daqui para dar um concerto com uma banda sua de rock pesado na Fonte da Telha. Os pais puseram-no em actividades extracurriculares, a estudar trompa, saxofone-tenor naquelas “cenas tipo união filarmónica”. Não era bem para ele. Tem uns olhos especiais, ultravivos e sinceros. Fala da música que a irmã e os amigos dela ouviam quando ele tinha menos de dez anos; grindcore, “cenas pesadas” no geral. Começou a interessar-se por guitarra e bateria.
Para além da música da mana, “havia a música da TV e da rádio. Só tive computador com net depois dos dez [anos]. Interessava-me bué como é que eles faziam aquele som cheio de distorção. Peguei nas cenas erradas e daí ouvir ouvir metal podre. Passei muito tempo a ouvir Slipknot [discussão prós e contras sobre o tema, a enésima do tipo durante a tarde], tinha dez-11 anos. Os Slipknot têm malhas de noise para quem não saiba. Ouvir 15 minutos de noise com onda fake satânica, todos bué da chateados. Imagina o que é um gajo de 11 ouvir aquilo e não saber qual é o contexto”.
Aí ouvia só punk hardcore: menos os clássicos, mais coisas actuais. Sacou o Fruity Loops, software-baluarte da criação digital de música nos últimos 20 anos, mas não se orientava com aquilo. “Não conseguia pegar naquilo e fazer batidas, melodias, porque queria experimentar tudo. Já aí comecei a fazer cenas com sonoridades estranhas. Portanto, antes dos 12 já gostava muito de experimentação sonora”. Largava a clássica e as marchas. Lembra um amigo importante, Wilson, do Bairro da Apelação: no primeiro dia da escola o João chegou com uma T-shirt de Brutality Will Prevail (“metalic hardcore ‘pá’ porrada”) e o amigo perguntou que idade ele tinha, e se queria fazer uma banda. Começaram a ir juntos ver vários concertos afectos ao hardcore. “Aí comecei a perceber que o que procuro é emoções fortes. ’Tás a ver?”. Claro. “Nessa altura era maluco para ir a todos os concertos possíveis”.
Apanhou o Diogo Oliveira por via do amigo Wilson numa matinée de hardcore. “Depois conheci outra referência da minha vida, Afonso Ferreira, Farwarmth”. Ele e o Afonso, que “já tinha começado a fazer uma onda mais experimental”, ia trocando pistas com o Rochinha. “Sinceramente, comecei a fazer ambient já depois de fazer ambient. Nunca tinha ouvido uma faixa de 30 minutos supercalminha até eu ter feito, ’tás a ver?...”
Dá-se o switch da coisa quando Afonso começa a “publicar coisas e a tornar a cena dele séria”, que fez com que o João começasse a pensar nisso também. Aliás, Afonso Ferreira e João Melgueira formaram e continuam a Alienação, que publica música digitalmente e organiza eventos muitas vezes nos mesmos e noutros sítios que a Rotten \\ Fresh, e que inicialmente ajudou a lançar Trash Can e o Império Pacífico, tendo entretanto abrandando os seus lançamentos digitais. Com o Afonso, o João Rochinha fez Purga (Dudáire, ALN010, 2016), que foi quando decidiu “[começar a] fazer cenas a sério”.
“Foi acontecendo, desde 2015 até aqui: começar a dar concertos, começar a publicar as cenas, começar a ter nomes para as coisas, a ter conceitos. E adoro ouvir. O meu grande objectivo quando oiço a minha música é transpor-me. Voltar a meter-me no mindset em que estava quando estava a fazer aquela música”. É no meio desse processo que começa a gravar os seus próprios samples com o telemóvel, no dia-a-dia, que posteriormente utiliza na sua música. “Acho muito fixe ouvir aquilo e saber onde é que gravei aquilo. É um estilo de música em que a mensagem não é evidente”.
Tem ainda os Monkey Flag, banda que começou de ser de stoner, mas agora é “mais paredes de som, estamos a investigar o que estamos a fazer”. Foi com os icónicos Sleep que “começou o fascínio com o volume, com os ‘amps’, com o tom. Ando a tentar incorporar isso em Unitedstatesof”.
No seu óptimo álbum pela RF, Selections 0, escolheu “as cinco melhores cenas que [andou] a fazer desde 2015. O objectivo é sempre mudar o mindset das pessoas que estão a ouvir. Estão a ouvir e deixam de estar onde estão. Dizer que sou grande mindbender [risos]. Pôr o pessoal ou a pensar muito ou a não pensar em nada”.
Oströl
É a primeira entrevista conjunta dos rapazes. Tomás Frazer, responsável por Austral Sounds sob o heterónimo Oströl, diz: “É engraçado ver como o pessoal chegou à música de formas diferentes. Eu nasci de uma família de músicos clássicos, fui pianista clássico.”
Pela via dos estudos lidou com Schubert, Bach, Mozart. “Ainda ouço e aquilo para mim é o melhor possível. O máximo que se ouvia em casa era Billie Holiday. Era o meu pai, já à noite, na sala, quando já ninguém o incomodava”. Depois apanhou com Green Day aos 11. Teve uma banda em que um dos membros era “do metal, outro do grunge, outro do reggae”.
Aos 18 anos voltou a virar-se seriamente para a música. “Aprender a ouvir. A seres mais honesto contigo mesmo. Estás a sonhar, mas estás a pensar no sonho e não na coisa que está à tua frente. E às vezes precisas de um espelho, e em produção estás sempre a ouvir o que tu fazes, e isso é um grande peso”.
“Comecei com house, completamente à margem da música [do seu meio]. Depois fui estudar para Inglaterra, em York. Faço composição também. Música interactiva, audiovisual [que é leccionada por lá, tal como música acusmática, electroacústica], concrète”.
O Tomás tinha 23 quando, ao acabar o projecto de final de curso em York “ia fazer um álbum de ambient tecno” e numa noite de youtubing mais intensa descobriu Demdike Stare. “Esquece. [Isto já existiu], GAS [de Wolfgang Voigt] já existiu, essas merdas já foram feitas, não tenho mais razão para fazer aquilo. Tudo o que ’tá na DeepChord já está batido. Decidi: ‘Não, quero fazer uma coisa mais descompassada, mais dark, mesmo a puxar pelo lado hipnótico da coisa’. Por isso é que sempre gostei do tecno. Um grande turbilhão. É isso que gosto de fazer, essa sensação, o cíclico”.
No seu álbum pela RF, decidiu “ir buscar samples, o Alex Jones, cenas persas, o Zeca Afonso, berimbaus...”. “E foi a primeira vez que fiz esse trabalho, e foi incrivelmente libertador. Tens cinco segundos de música de outra pessoa e começas a brincar. Consegui olhar de fora”.
Depois de falar de Feldman, Vivier, Vatican Shadow, Shackleton e novamente de Schubert (“aquilo é”), diz que “agora sente menos separações pessoais entre clássica, electrónica, música de dança, Nirvana, rock. Agora já não é uma escapatória, é mais tudo ao mesmo tempo. Já estou só a fazer. É bué importante ter este grupo de pessoas que estão no mesmo meio que tu e que fazem coisas, porque é importante pensares ‘como é que este gajo fez isto?’, porque sem essa realidade tu estagnas. A tal competitividade. Isso é bué importante, mas é novo para mim. Fico mesmo feliz com a minha decisão de voltar para Lisboa. Só para voltar a entrar em contacto com as coisas que gosto. Sol, comida, pessoas fixes e música boa”.
Buhnnun
Benjamim Castanheira cresceu em Nadadouro, Caldas da Rainha, casa dos pais. “Tinha quatro canais, sem Internet. Gira-discos, colecção deles de música. Passava os dias inteiros só a ouvir música. Foi quando comecei a ouvir música decente, com algum significado. Há música que é mais feita para vender, por assim dizer”. O pai mostrava-lhe Vangelis, Kraftwerk, Duke Ellington, Led Zeppelin. “Foi aí que comecei a estabelecer aquilo que eu gostava em música. Isso levou-me a um método de conhecer música em que só ouvia o que me mostravam. Em vez de procurar música que poderia gostar, habituei-me a procurar pessoas que iriam gostar de música que eu iria gostar. Adaptei [esse modus operandi] aos meus amigos [ri-se, de leve]”. Desse tipo de processo chegam-lhe, já no eixo de aliados da Rotten \\ Fresh, Venetian Snares, Boards of Canada, Squarepusher ou o Scott Walker fase (excelsa) da terceira idade.
Teve algumas aulas com o baterista Gabriel Ferrandini, que não teve disponibilidade para continuar a conciliar com os estudos, mas de onde retirou “algumas ideias”, e percebeu “que podia inventar mais” e não basear-se só naquilo que já havia. Suave, continua: “Sempre tive interesse por tecnologia e computadores. Nunca aprofundei muito, de vez em quando lia artigos na net e então desenvolvi essa temática de Buhnnun, que era um computador que processava a informação que eu recebia, e depois passava para o computador. Ele processava isso e transformava em música. Baseio-me naquilo de inteligência artificial autodidacta, que vai aprendendo à medida que faz coisas, com os erros que acontecem dos resultados”.
Utilizando o software Audacity, transformava “imagens em som, transformava o som com efeitos do Audacity e transformava-os outra vez em imagens. [O som] depende da cor, da imagem, tipo de ruído diferente. Meter um eco no som fazia com que a imagem ficasse repetida. Ou fazer isso com texto, abrir imagens em editores de texto, ou até sons em editores de textos e mudar o texto e copiar partes desse texto para outros sítios, e daí saíam outros sons. Tudo muito digital e muito artificial, no sentido em que não é natural. É tudo feito por números binários ou em hexadecimal, o que seja.” O seu monstro AI continua a progredir. “O mais importante era o som. Se havia uma estrutura, se havia notas, se havia uma harmonia. Mas a partir daí foi evoluindo como eu pensaria que um computador iria pegar naquilo”. A progressão ainda não tem fim à vista.
Benjamim estuda na Escola Superior de Música, depois de ter feito especialização em Som na António Arroio. Lembra o professor Jorge Luís Ferreira, entretanto falecido, que teve “grande influência” no seu trabalho, e o ensinou a “identificar todo o tipo de sons”, e a enquadrá-los em categorias. Pensar no que “é que fazia aquele som ser aquele som?’”, e saber distinguir. “Isso é bastante importante. A parte mais importante de fazer alguma coisa criativa é a pesquisa e a preparação para fazeres o que queres”. Tem disco a sair na editora este ano.
Diogo Oliveira
O Sr. Rotten \\ Fresh. “Cresci [e] tive em Odivelas sempre com pessoal de Odivelas. Nunca me senti acompanhado musicalmente, mas isso em parte ajudou-me a não desistir. Via os meus colegas que se estavam um bocado a borrifar para a música, para outro tipo de expressão artística e eu sempre fui um bocado crominho”.
Fala da colecção de discos que o avô, que veio de Angola, trouxe. Teta Lando, Bonga, Duo Ouro Negro. No carro nas férias para o Algarve também com os avós, as cassetes de Paulo Flores e Eduardo Paim a sair das colunas. Fado e Beatles. California Dreamin’, San Francisco, e os “índios da Patagónia”, bandas bolivianas e peruanas de praia no nosso acesso ao mediterrâneo. Coldplay. Shirelles, Daft Punk. Tudo antes dos seis anos, claro.
Pergunta simples então — porque é que ele tem uma editora de música electrónica assim? “Porque são os meus amigos de sempre. A partir de 2013 comecei a prestar mais atenção a este lado mais exploratório. Primeiro porque é uma música que me dá paixão ouvir, dá-me ‘pica’. Gosto de pessoas com ideias. E há pessoas com ideias a fazer isto. Não me fechar sempre na mesma coisa. Estou a dizer isto, mas também oiço Ariana Grande e pop português”. Lena d’Água, Sérgio Godinho, Anjos — há um debate colectivo sobre a validade do Perdoa. Logo de rajada sublinha que foi em 2015, quando descobriu “um álbum do Fennesz que é o Cendre com o [Ryuichi] Sakamoto”, que foi ele que o “abriu para uma música electrónica não tão dançável”. Fala ainda de Birth of New Day de 2814, outro dos tomos de segunda microgeração do vaporwave, como um marco, “importante para me mandar lá para dentro”.
Sinceramente tenho dificuldades em lembrar-me de muitas outras pessoas que tenha conhecido que cruze com tanta liquidez, na noção baumaniana da coisa, tanta informação musical, e aos 23 anos impressiona particularmente. Tal como o final da nossa conversa conjunta de três horas.
“O que é que acho que é bom? Uma coisa que seja minimamente desafiante e que desafie, não quero dizer os dogmas. Numa música que o Sam the Kid tem com o Valete [e Ikonoklasta] que se chama Pela Música Parte 2, há uma parte em que ele diz: “Vai jantar com as editoras/Vai à night com as editoras”, e ele diz uma cena. “Man, não tragam o pudim / o pudim já ’tá na mesa, man/tragam arroz-doce, boy/falta arroz-doce!” [mais risos, já a improvisar], “traz arroz-doce, traz pastel”!, e na música acho que é isso que é pretendido. Não tragam mais pudim, mano! [risos vagamente descontrolados; pausas para recuperar a respiração] Ya, mas é verdade, meu. Geralmente o que não tenta ser pudim agrada-me particularmente. Ou um pudim muito bom, ou então uma coisa que não seja pudim e que seja decente também. Pode ser salgado. Citando Sam The Kid, é isso, basicamente.”