O teste da Lei de Bases da Saúde

O teste à aprovação de uma lei que vinque as fronteiras entre os vários interesses estará na eliminação de formulações como estas.

Quando os deputados votarem a lei que vier substituir a actual Lei de Bases da Saúde, a expectativa é de que venha a representar um instrumento jurídico que contribua para que a política de saúde e a organização do Serviço Nacional de Saúde estejam alinhados, sejam o contrato social que no sector responda aos défices que se foram acumulando e clarifique o papel dos vários actores com interesses nos cuidados de saúde. E de uma vez por todas considerar-se que cabe à organização, financiamento e gestão serem instrumentais relativamente à saúde, e não o contrário, como tem vindo a acontecer.

São várias as disposições que contribuíram para a criação do conceito de sistema de saúde, aquelas que formalmente têm respaldado o desenvolvimento de ambiguidades e cavalgamentos nas relações entre o sector público e o sector privado, e que foram responsáveis pela transferência, em 2015 (Conta Satélite da Saúde), de 38% do orçamento do SNS, à volta de quatro mil milhões de euros, para as empresas produtoras de cuidados de saúde. O teste à aprovação de uma lei que vinque as fronteiras entre os vários interesses estará na eliminação de formulações como “O Estado apoia o desenvolvimento do sector privado (...) em concorrência com o sector público”, “Facilitação da mobilidade do pessoal do Serviço Nacional de Saúde que deseje trabalhar no sector privado”, “A hospitalização privada, em especial, actua em articulação com o Serviço Nacional de Saúde”, “A gestão das unidades de saúde deve obedecer, na medida do possível, a regras de gestão empresarial”, “Pode ser autorizada a entrega, através de contratos de gestão, de hospitais ou centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde a outras entidades ou, em regime de convenção, a grupos de médicos”, “A lei pode prever a criação de unidades de saúde com a natureza de sociedades anónimas de capitais públicos”.

Embora nove das dez disposições da Base II da lei de 1990, sobre a política de saúde, se mantenham actuais, desde logo a que se refere à promoção da saúde e à prevenção da doença como fazendo “parte das prioridades no planeamento das actividades do Estado”, acabaram, nos 28 anos que leva da sua existência, por não terem passado de boas intenções que nunca encontraram suportes institucionais, comunitários e as parcerias indispensáveis que as concretizassem. É por isso que, estando na ordem do dia o dossier da descentralização, ela deve ser aproveitada para promover a reunião, a organização e a convergência dos actores públicos que localmente estejam em melhores condições para as concretizar.

É verdade que uma boa Lei de Bases da Saúde não faz a Primavera da política de saúde do país, mas passa a representar um quadro de referência a partir do qual se podem construir boas soluções. Tudo para contrariar o pessimismo justificado de Slavoj Zizek (A coragem do desespero): “A esquerda existente é bem conhecida pela sua assombrosa habilidade de nunca perder uma oportunidade de perder uma oportunidade.” Os deputados do PS, BE, PCP e PEV, os mesmos que no Parlamento têm conduzido e cumprido exemplarmente a letra dos acordos de 10 de Novembro de 2015, têm, neste caso, uma oportunidade única para cumprirem também o seu espírito. Porque a política, como a natureza, tem horror ao vazio.

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