Tempo de viver
Como bastonário da Ordem dos Médicos, estou do lado da vida. Defendo-a todos os dias, no exercício das minhas funções.
Um consenso inquestionável: todos queremos o melhor para os doentes, independentemente da forma como se encara a eutanásia, quer se seja a favor ou contra. Este é o assunto do momento. Fala-se de morrer, de ajudar a morrer, de morrer com dignidade, de boa morte. Eutanásia é sinónimo de morte, não há volta a dar. Será já tempo de decidir? Ainda há muito por falar, esclarecer, debater, informar...
Como bastonário da Ordem dos Médicos, estou do lado da vida. Defendo-a todos os dias, no exercício das minhas funções, na aplicação do código deontológico, mas também, como médico, na rotina dos cuidados de saúde que presto aos doentes. Assim se regula a Medicina, prática de defesa da vida – e da qualidade de vida – de todas as pessoas.
Fala-se muito de morrer com dignidade. Mas há conceitos distintos – ‘ajudar a morrer’ ou ‘matar a pedido’ – para uma mesma ideia, um mesmo facto... irrefutável: a morte. Cada uma destas expressões encerra em si própria uma tendência, uma opinião perante o que agora vai a votação, já esta terça-feira, 29 de maio, na Assembleia da República – a despenalização da eutanásia, ou melhor dizendo, a legalização da eutanásia.
Eutanásia é o tema, o assunto em debate. ‘Ajudar a morrer’ – dirão os que defendem que uma morte (dita) digna pode ser suscetível de atenuante e de cumplicidade de outro alguém que auxilie o (alegadamente) incapacitado doente, (capaz) na escolha do seu próprio destino. ‘Matar a pedido’ – dirão muitos outros que colam até o doente ao papel de ‘vítima’ da sua própria decisão.
Há muito em jogo. Tudo, aliás: a vida. Por isso, será já tempo desta votação na Assembleia da República? Na vida, há ainda muito por fazer. E muitas ferramentas ao dispor dos cidadãos que precisam ser mais divulgadas, mais disponibilizadas a quem quer viver. Melhor. Na vida, há as diretivas antecipadas de vontade (testamento vital), o consentimento informado do doente, os cuidados paliativos. Na vida, há a família, os amigos, os profissionais de saúde. Na vida, há que lutar contra o abandono e desamparo dos mais idosos e dos doentes em fim de vida; há que dar informação, aconchego, afeto; há que cuidar. Há formas de dar dignidade ao fim de vida sem desistir, sem evocar uma decisão radical, definitiva, fatal.
É tempo de falar – e atuar – para colocar ao dispor de todos a informação essencial sobre decisões sobre o fim da vida. Antes da derradeira e fatalista sentença, há um percurso a fazer e todos temos o dever – e o direito – de o conhecer na plenitude. E todos temos o direito a cuidados de saúde de qualidade que nos permitam avaliar, enquanto doentes, as opções para ter mais vida com a máxima qualidade possível.
Não se confunda este prolongamento com distanásia – obstinação terapêutica ou o adiamento forçado, por meios artificiais, da morte de um doente. Pense-se antes, sim, na evolução da Medicina, nos novos medicamentos capazes de atenuar sintomas e efeitos negativos da doença, no indispensável melhoramento da rede de cuidados de saúde e de apoio social. Caminhos que tornam o caminho do fim da vida mais condigno com a vida e não com o escape da morte.
Muito há ainda para fazer na área dos cuidados paliativos e do apoio aos doentes (família, cuidador informal, amigos...) antes de se falar de ‘boa morte’. Para uma decisão como a eutanásia, equivalente a um ponto final na vida – seja ela encarada como ‘ajuda à morte’ ou ‘morte a pedido’ –, ninguém deve sequer ponderar antes de conhecer todas as opções dignas para continuar.
Todos queremos viver. E viver bem. O sistema de saúde precisa de melhorar muito antes de se permitir considerar a decisão da morte. A vida deve ser preservada, nas melhores condições, com a maior dignidade. Até ao fim.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico