Não ao retrocesso em nome da vida!
Portugal foi, há 150 anos celebrados o ano passado, um dos primeiros países a abolir a pena de morte, uma luta em nome da vida. Que retrocesso se vier a ser um dos primeiros a legalizar a eutanásia, insultuosamente, também em nome da vida.
Muito se tem falado sobre a eutanásia enquanto direito individual. O que é naturalmente uma abordagem importante, ainda que não resista a relembrar o pensamento de Arundhati Roy: “Numa era em que olhamos para a sociedade pelo filtro dos direitos – legais, humanos, de género – temos que pensar se, ao dividir e categorizar as pessoas, estamos a dar liberdade ou a retirá-la.” Os direitos são importantes mas não são a única forma de olhar para a liberdade.
A verdade é que ao falarmos do indivíduo estamos a falar de um ser relacional, enquadrado na sociedade, numa comunidade. O direito individual de pedir à comunidade para tirar uma vida confronta visões irreconciliáveis entre o bem individual e o bem comum. Ora a eutanásia, enquanto atentado à vida, ao remover da comunidade um dos seus membros, ao pretender cometer um homicídio por qualquer outro nome, ao atentar contra a dignidade da profissão médica que já se insurgiu em Portugal contra esta possibilidade de legalização, ao reduzir as suas vítimas à categoria de dispensáveis, descartáveis, mesmo com o seu consentimento putativo, esta eutanásia lesa a sociedade, a comunidade, nos seus pilares mais fundamentais de definição de pessoa, de valorização da vida e de dignidade. Não podem os direitos individuais se sobrepor aos fundamentos da comunidade.
A subversão desta ordem, na qual os direitos dos indivíduos assentam nos direitos da sociedade e não o contrário, implica a necessária banalização de qualquer ato criminoso, cuja moralidade se reduz a um silogismo individualista, que no conjunto formam um pântano no qual nenhum edifício social poderá ser construído. Se a sociedade o é em função das noções individuais de vontade e dignidade, sem haver uma estrutura sob a qual assenta, então estamos no pior cenário de liberalismo possível, sendo curioso estarem os partidos que mais demonizam o liberalismo a defender esta sua interpretação extrema.
Não deixa de ser curioso estarmos num país onde vemos um Governo cioso de cercear as pequenas liberdades individuais, de modo a proteger o cidadão da sua vontade mal-direcionada, como patente no "imposto da batata frita", e tão liberal em relação à forma como qualquer um pode pretender por termo à sua vida.
Pois que paradoxos destes são, por definição, apenas aparentes, há que sublinhar (talvez louvar) a coerência subjacente a esta atitude legislativa: posto que a vida é, de forma absoluta e inequívoca, a expressão maior da liberdade de cada um, ser um legislador castrante na vida e liberal na morte é um contínuo perverso de uma visão onde o Estado só nos liberta quando pretendemos por termo à nossa liberdade de seres vivos, um Estado onde a dignidade do indivíduo só vale quando este se predispuser a deixar de o ser, onde o valor da sociedade democrática e livre só se encontra quando esta se apresenta submissa, tanto na vida como na morte.
Chegamos enfim ao ponto chave gritado pelos atalaias da nova engenharia social: a dignidade humana, que deve ser assegurada na morte, ainda que, nesta nova ordem, na vida tal dignidade se mostre muito contingente da situação de cada um. O grande problema aqui surge na própria definição de dignidade, que nada já tem a ver com uma ideia de Humanidade, Missão, Sociedade, mas antes com o respeito (leia-se submissão) à vontade de cada um, e apenas na medida em que essa vontade vá de encontro à vontade de um Estado e de uma sociedade que agradecem a saída de cena dos seus "fardos". Relembremos a história e não repitamos erros. Como esquecer a inspiração nas teorias visando a eliminação da "vidas não dignas de ser vividas" à prática da eutanásia na Alemanha Nazi. A Alemanha não esquece. Não nos enganemos com poesias sobre dignidade quando não somos coerentes com a definição da mesma: a morte incomoda, um doente terminal incomoda, se alguém quer sair de cena então que saia, agradece o próprio e, entre lágrimas que até poderão ser sinceras, os outros agradecem também. Assim, esse grande mistério que é a morte torna-se uma coisa asséptica, económica, com hora marcada.
"Mas é a vontade do próprio, no meio da sua grande dor", respondem. Volta-se a assumir uma vontade individual, nestes casos apenas, perfeita e cristalina, isenta de influências externas e pressões, uma razão no seu pleno funcionamento apesar da (ou devido à) grande dor que aflige o paciente. Mesmo ignorando este absurdo, os excessos cometidos na Holanda e na Bélgica bastam para que se veja que esta definição de vontade será sempre muito difícil de respeitar. As portas para os abusos em nome da dignidade, seja qual for o valor utilitário e banal que se lhe pretenda atribuir, ficam abertas de par em par.
Portugal foi, há 150 anos celebrados o ano passado, um dos primeiros países a abolir a pena de morte, uma luta em nome da vida. Que retrocesso se vier a ser um dos primeiros a legalizar a eutanásia, insultuosamente, também em nome da vida.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico