Vinhos feitos de mar, de rocha, de areia e de vento
O Centro de Portugal vai do Atlântico até Espanha passando pela serra mais alta do país, a da Estrela, e tem uma enorme diversidade de terroirs. É uma região para descobrir com calma, por entre brancos, tintos, espumantes e algumas surpresas.
Região de Lisboa
Os vinhos que o mar nos traz
Ainda mal entrámos em Óbidos e já Vasco d’Avillez nos está a falar do mar, dos romanos, dos mouros. E de vinho, claro. Começamos a viagem logo aí, com D. Afonso Henriques a arrebanhar tropas para lutarem ao seu lado e a dar-lhes, em troca, “terra boa para a vinha, pela qual pagam 20% de imposto, ou seja, um quinto, daí o nome de quintas”. E, no Sul, onde, mais tarde, as terras podem ser herdadas, passam a chamar-se herdades, continua, entusiasmado, o presidente da Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa.
Foram os vinhos que nos trouxeram nesta viagem pelo centro de Portugal, mas, em todas as paragens, eles cruzaram-se com a História e com muitas histórias. De mapa aberto sobre uma mesa, Vasco d’Avillez está lançado: “Toda a região de Lisboa tem uma frente atlântica e por aqui, na zona de Peniche e Óbidos, passa a corrente quente do Golfo, que influencia o clima. Por isso, há nevoeiros nocturnos na Primavera e no Verão, que são chamados de rocío.” As pérolas de água que se depositam nas folhas da videira de madrugada “são melhores que uma rega”. As uvas criam menos açúcar e ganham maior acidez e frescura.
Andamos por Óbidos, guiados por Paula Ganhão, da Câmara Municipal, que nos fala do tempo em que a vila era o “porta-moedas das rainhas”, que, no dia do casamento, a recebiam para gerir e, de como, muito mais tarde, o Estado Novo criou o concurso das janelas floridas para que trepadeiras e flores nas janelas escondessem algum desgaste no exterior das casas.
Passamos por algumas das muitas livrarias da Vila Literária, a que fica dentro de uma antiga igreja ou a que partilha o espaço com um mercado biológico, e acabamos a tomar uma ginjinha noutra livraria dentro de uma antiga adega, antes de partirmos, guiados por Vasco d’Avillez, para um almoço no restaurante Dom José, no Bombarral, onde provamos o vinho leve, que existe nesta região e cujo teor alcoólico não ultrapassa os 10º.
Apesar de ainda não estar tempo de praia, o mar nunca anda muito longe nesta visita à Região de Lisboa. Na Adega Mãe, a 40 quilómetros da capital para Norte, há um barco de onde de vê a vinha. É o Dori 37 (Dory é o nome de um dos vinhos deste produtor) – que pertenceu ao bacalhoeiro Creoula. Era nestes frágeis barcos que os homens que faziam a pesca do bacalhau passavam o dia inteiro sozinhos, até o terem cheio de peixe e poderem voltar ao bacalhoeiro.
E está aqui, no meio de uma adega e rodeado de vinha, porque este é um projecto familiar de Ricardo e Bernardo Alves, os dois irmãos à frente da empresa de bacalhau Riberalves, que fizeram assim uma homenagem aos pais – e, sobretudo, à mãe. Mas o mar tem muito mais a ver com esta história – estas são vinhas que estão a apenas oito quilómetros do Atlântico e as brisas que aqui correm trazem o ar salgado até ao vale.
A humidade do solo dá vinhos frescos e é excelente para os brancos, o que levou os enólogos (Anselmo Mendes e Diogo Lopes) a optarem por arrancar as castas tintas e apostar nas brancas (os tintos da Adega Mãe são feitos com uvas que crescem do outro lado do vale).
A maresia chega até nós também no hotel Areias do Seixo, onde ficamos hospedados, e protegemo-nos dela bebendo um copo de vinho junto à fogueira no exterior, que todas as noites atrai um grupo de hóspedes que por ali fica à conversa com Gonçalo Alves, o proprietário.
No interior, espera-nos um menu de degustação criado por Henrique Mouro, chef do Areias do Seixo, onde pratos tradicionais portugueses, como a sopa à fragateira, o cozido à portuguesa ou um choco frito com arroz de ostra conseguem mostrar-se, ao mesmo tempo, familiares e surpreendentes – tal como é surpreendente a carta de vinhos, com uma colecção de Portos e Madeiras, herança de família de Gonçalo.
Na noite seguinte, é ainda com Gonçalo que vamos conhecer um dos mais recentes projectos da região, a Quinta da Boa Esperança, onde Artur Gama e Eva Moura Guedes fazem vinhos handcrafted – chamam-lhes assim por serem uvas colhidas à mão e pelo cuidado que põem em tudo, da vindima ao suave desenho dos rótulos, criados por Eva.
Paula Fernandes, enóloga da quinta, fala de cada um, explicando como os monocasta – fazem Syrah, Touriga Nacional, Alicante Bouschet, Fernão Pires, Arinto (além da combinação das duas castas, clássica na região) e Sauvignon Blanc – podem ser didácticos para se perceber as características de cada uma e comparar com outras regiões – o Syrah “muito mais especiado do que no Alentejo”, a Touriga “mais fresca do que no Douro”.
E assim, conversamos noite dentro, numa sala de jantar na adega, à luz de um candeeiro que Eva decorou com rosas que balançam sobre as nossas cabeças enquanto provamos os vinhos e comemos ervilhas com ovos escalfados.
Região do Dão
Os vinhos que a rocha nos dá
É preciso deixarmos os olhos habituarem-se à escuridão do espaço subterrâneo da adega da Quinta de Lemos, em Silgueiros, próximo de Viseu, para vermos na rocha granítica que se desfaz quando passamos os dedos sinais das raízes das videiras. Mas, sim, lá estão elas, aparentemente frágeis mas capazes de penetrar a pedra para chegar à água.
Estamos a 400 metros de altitude, entre as serras da Estrela e do Caramulo, numa zona de microclima, fustigada por chuvadas grandes nos finais de Setembro. No exterior, as formações da mesma rocha, com 300 milhões de anos, despontam por todo o lado, junto à vinha, e até no meio do restaurante Mesa de Lemos – onde o chef Diogo Rocha inicia o menu colocando na mesa um prato com pequenas pedras de granito, vide e gelo que evoca as geadas primaveris da região.
Aqui, nesta quinta do empresário têxtil Celso Lemos, um projecto relativamente recente comparado com muitos da região, fazem-se vinhos em condições especiais: 75% da produção de uva é deitada fora para aumentar a qualidade dos frutos que ficam na videira e foram já construídos lagares em pedra, semelhantes aos antigos, para se poder fazer pisa a pé.
Dos 23 hectares de vinha da Quinta de Lemos saem vinhos, na sua maioria tintos, com os nomes das mulheres da família, e a ambição de terem grande longevidade. O melhor mesmo é prová-los no Mesa de Lemos, com a comida de Diogo Rocha.
Mas o terroir do Dão está longe de ser todo igual. Depois de jantarmos no Mesa de Lemos, dormimos na Casa da Ínsua, a poucas dezenas de quilómetros, em Penalva do Castelo.
Estamos noutra realidade, com solos argilosos além dos granítico-arenosos, e um clima continental, marcado pelo calor seco vindo de Espanha. Já não vemos as grandes formações rochosas e aqui são os ventos quentes que sopram as vinhas. “A região do Dão é muito heterogénea”, explica José Matias, enólogo e responsável agrícola da Casa da Ínsua, enquanto nos mostra as vinhas e nos fala da aventura em que o Grupo Visabeira, o proprietário, se lançou ao começar a fazer vinho em Moçambique.
Ao lado das vinhas há um pomar onde as macieiras estão em flor e, a dois passos, os românticos jardins francês e inglês deste palácio barroco que pertenceu a Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, capitão-general de Mato Grosso e Cuiabá. Num pequeno lago, um cisne branco lança-se num semi-voo, batendo as asas na água e estilhaçando os reflexos de luz. Logo à frente, na queijaria, faz-se Queijo da Serra da Estrela e os doces caseiros que comemos ao pequeno-almoço.
Mas é tempo de partir porque na Casa de Santar espera-nos Osvaldo Amado, o enólogo do grupo Global Wines, para nos contar que a Casa de Santar produz anualmente 1 200 mil quilos de uvas, faz 140 referências de vinhos e sete milhões de garrafas às quais se somam mais dois milhões no Brasil, onde tem, em Pernambuco, o projecto Rio Sol.
Para provarmos os vinhos, vamos até ao vizinho Paço dos Cunhas de Santar, enoturismo que pertence também à Global Wines, onde nos espera um almoço preparado pelo chef Henrique Ferreira, durante o qual percorremos as referências mais emblemáticas, Cabriz, Casa de Santar, Paço do Cunhas, descobrimos experiências como o Touriga Nacional branco (um branco feito com uvas tintas) e ficamos a saber que a casta favorita de Osvaldo Amado é o Encruzado.
Para o enólogo, o Encruzado “está entre as cinco melhores castas brancas do mundo, com o Arinto, o Chardonnay, o Sauvignon Blanc e o Alvarinho”. Porquê? “É completamente transversal. Faz um vinho tranquilo para todos os dias, um de guarda, um espumante e um colheita tardia. Esta acidez não se encontra em qualquer lado.”
Região da Bairrada
Os vinhos que nascem do barro e das areias
Para falarmos sobre a Bairrada nada melhor do que começar por um encontro com Luís Pato, o enólogo mais carismático da região, conhecido como o Sr. Baga pelo trabalho que tem feito com esta casta com fama de difícil de domar. E encontramo-nos precisamente noutro dos ícones locais, o restaurante Rei dos Leitões, famoso pelo leitão, claro, mas actualmente com uma carta muito mais variada e de grande qualidade – e sobremesas imperdíveis, da pasteleira Lídia Ribeiro.
É ao almoço que provamos o primeiro espumante feito sem sulfuroso, através da micro-oxigenação, uma das muitas experiências que Luís Pato gosta de realizar na adega (como o tinto de uvas brancas que fez para um dos netos ou o vinho de sobremesa colheita antecipada que fez para outro ou ainda o vinho laranja, o Laranja da Madalena, que fez para a neta).
Na Bairrada há solos arenosos, mas 80% são argilo-calcários, aqueles que a Baga prefere (é uma casta que se dá melhor aqui do que no Dão por ser muito sensível à podridão). “O clima é parecido com o de Bordéus, mas muito melhor porque o mar é mais frio”, diz Luís Pato, e as noites frias entre dias quentes são boas para a vinha.
Depois do almoço, passamos pela adega e Luís mostra-nos os fósseis que foram encontrados nas vinhas e que provam que, no Jurássico, esta região esteve debaixo do mar. Para despedida levamos outra experiência: dois Bagas feitos por Luís Pato, um em vinha de pé-franco (como existia antes da filoxera ter atacado as vinhas europeias no século XIX) no solo arenoso e a outra em pé-franco mas em solo argiloso.
Antes de deixar a Bairrada, voltamos a encontrarmo-nos com Osvaldo Amado, da Global Wines, que também tem aqui, a poucos quilómetros de Luís Pato, um projecto de enoturismo, a Quinta do Encontro, numa zona de vinha e eucaliptos, a 20 quilómetros do mar, com solos argilo-calcários a poente e arenosos a nascente e uma adega que desce em espiral até aos frescos subterrâneos onde o vinho fermenta.
Região da Beira Interior
Os vinhos que vêm das alturas
É entre as ruínas do castelo da Aldeia Histórica de Castelo Rodrigo, numa posição privilegiada para vermos tudo ao nosso redor, que Ana Berliner, a proprietária da Casa da Cisterna, onde ficaremos instalados, e a enóloga Jenny Silva, da Adega Cooperativa de Figueira de Castelo Rodrigo, nos recebem e descrevem o que vemos: estamos entre os rios Douro e Côa, no planalto da Meseta Ibérica, numa terra onde os monges de Cister começaram a fazer vinho logo no século XII.
O planalto que se estende à nossa frente está a 600/700 metros de altitude o que, em conjunto com os solos muito marcados pelo quartzo e o xisto mas com bolsas de granito, permite fazer os chamados vinhos de altitude, com “uma acidez e frescura muito natural”. Os Verões aqui são muito quentes e secos e os Invernos extremamente rigorosos e esta dureza beneficia as uvas.
A zona escarpada agrada também às aves de rapina (há uma colónia de abutres no Côa), que Ana estuda, no meio de muitas outras actividades. Jenny, por seu lado, dedica-se ao vinho e, nos últimos anos, em particular, ao estudo de um fenómeno que acontece apenas em algumas zonas do mundo e que dá origem a um vinho que neste momento só pode ser produzido pela Adega Cooperativa de Figueira de Castelo Rodrigo: o Pinking. Trata-se de um vinho branco, feito com a casta Síria, uma das mais características da região, com um bonito tom rosado natural que, até há pouco tempo, era atribuído a um defeito das uvas.
O que Jenny provou foi que esse tom, que surge no final da maturação, não é um defeito, mas sim o resultado de uma mutação genética que fez com que mantivesse antocianinas das uvas tintas. O Pinking não é rosé porque é de uvas brancas, mas tem um delicado tom de rosa que é natural e que deixou numa casta branca uma memória do tempo em que terá sido tinta.
Desde que a descoberta de Jenny foi conhecida, a Adega de Figueira de Castelo Rodrigo é a única que tem, para já, autorização para fazer este vinho, mas a enóloga tem sido contactada por produtores de outros países, como Itália, onde, em regiões específicas e com determinadas castas, o fenómeno também acontece. O que se fazia até agora era correcção de cor, mas quando o Pinking começou a ser engarrafado aqui, algumas pessoas mais velhas disseram a Jenny: “Quando era miúdo, o vinho era desta cor”.
É com o Pinking que começamos a refeição, mas depois passamos para outro dos vinhos famosos da região, o Beyra, do enólogo Rui Roboredo Madeira, que se encantou com a ideia de trabalhar a partir de vinhas em altitude nestes solos de xisto, granito e quartzo e neste clima em que a alternância entre noites frescas e dias quentes resulta em vinhos com maior frescura e acidez.
E terminamos com uma sobremesa de doce de ovos com amêndoa, acompanhada por um espumante da Adega de Figueira de Castelo Rodrigo, feito com as uvas Síria e Malvasia Fina, enquanto olhamos o vale e, ao longe, as terras onde os monges de Cister faziam o seu vinho há muitos séculos atrás, deixando aqui uma herança que, até hoje, os homens não esquecem. E, como prova esta história, o vinho também não.
A Fugas viajou a convite do Turismo do Centro