O ministro que deu a alma ao manifesto
Os investigadores têm de deixar de considerar o Estado como o único ecossistema onde há vida para o seu saber.
Se a guerra é um assunto demasiado importante para se deixar ao cuidado dos militares, a ciência é uma questão demasiado fundamental para ficar nas mãos dos cientistas. É por isso que quando eles lançam um manifesto no qual se condena com veemência o estado da arte do sector em Portugal e o ministro da tutela corre célere a subscrevê-lo, algo vai mal. Já tínhamos visto o ministro da Saúde a dar razão a uma greve dos médicos, agora vemos Manuel Heitor a subscrever um documento crítico sobre a área que ele governa e um destes dias correremos o perigo de ver as corporações a governar e os ministros a redigir manifestos. E ainda por cima manifestos que, em vez de voltarem para os interesses do país, se centram principalmente nos seus problemas quotidianos. Se os cientistas têm razão nas alertas que fazem e em muitas das exigências que deixam, o ministro que as assuma e as corrija. A pressa em os assinar de cruz, em ser porreirinho, não é apenas inútil - é também irritante e errada. Há um passado e um futuro no sistema que merece ser discutido e o ministro não deve não deve circunscrever a discussão aos financiamentos, bolsas, formulários ou regimes contratuais.
Bem sabemos que a política científica ou para o ensino superior que este governo, e bem, reuniu sob a égide de um único ministério não tem a visibilidade pública da administração interna ou das Finanças. A ciência é um assunto demasiado etéreo para o comum dos mortais. Mexe com centros de investigação, institutos de interface, laboratórios associados, departamentos de universidades, bolsas da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) ou com programas europeus, tudo materiais indigestos para o comum dos mortais. Mas haverá poucas áreas da nossa vida pública tão cruciais para o futuro. Portugal tem hoje um sector agrícola e agro-industrial dinâmico porque conseguiu incorporar-lhe ciência. Tem uma indústria do calçado competitiva à escala mundial porque os empresários serviram-se do saber dos investigadores. Foi capaz de passar de um nível de exportações de 32 para mais de 40% do PIB nos anos de chumbo da troika porque o sistema científico e tecnológico tornou a economia mais moderna e sofisticada. Sem o papel da ciência e das universidades, hoje estaríamos muito pior.
Os números não mentem e hoje pode dizer-se que o manifesto para a ciência lançado por Mariano Gago em 1990 e, em certa medida, executado quando ocupou o cargo de ministro da Ciência do Governo de José Sócrates, resultou. Em 25 anos a produção científica cresceu 25 vezes, o número de patentes 45, as universidades que “produziam” perto de 700 doutorados no ano 2000 são capaz de formar hoje 3000, em 1986 publicaram-se 664 artigos em revistas especializadas e em 2015 esse número tinha subido para lá dos 21 mil. Não, Portugal não compara ainda com os países mais avançados. Mas, olhando para trás é impossível não concordar com António Costa quando ele diz que nunca houve uma geração de portugueses tão bem equipados para enfrentar uma nova revolução industrial (a revolução digital que se anuncia) como a presente.
Então, perante tantos dados cor-de-rosa por que razão os nossos investigadores se sentem desiludidos e avançaram? Porque o modelo actual bateu no tecto. Porque a burocracia do estado lhes inferniza a vida, cercando-os numa teia de contratos labirínticos e formulários lunáticos que roubam tempo à inteligência e forçam os mais pacientes a perder a cabeça. Porque o actual modelo de financiamento é incerto. Porque em muitos casos os investigadores suspeitam da falta de transparência. É impossível não ouvir os reitores ou os investigadores falarem sobre as suas rotinas entremeadas nos seus processos de investigação e não concordar com as razões dos seus protestos. Mas, para lá desta teia comprometedora da eficácia do sistema, há muitas outras razões que deveriam constar no protesto dos nossos cientistas. Esse é o grande problema do manifesto. Há no seu teor uma certa secreção corporativa que os isola. Teria sido melhor que, para lá do caderno reivindicativo, exigissem ao estado mais contributos para a diversificação do emprego científico. Há mais mundo para lá da esfera da ciência patrocinada pelos impostos, ainda que seja uma obrigação colectiva financiar o mais possível a ciência com o orçamento do estado.
Portugal caiu há quase 20 anos na armadilha do rendimento médio e derrapa numa crise de produtividade e de criação de valor acrescentado. Se o bom desempenho do sistema científico e tecnológico nacional impediu o naufrágio, hoje parece necessitar de um tónico para criar o músculo que o país precisa para um próximo salto em frente. E isto acontece porque a ciência e os investigadores portugueses caíram excessivamente na dependência das universidades e das bolsas do Estado. Portugal tem apenas cerca de 4% dos seus doutorados a trabalhar nas empresas – eram 2.8% há meia dúzia de anos. Na OCDE a média é superior a 15%. Em países como a Dinamarca esse valor chega a ultrapassar os 40%. A carreira de investigador tornou-se em excesso uma carreira de funcionários públicos, dependente de contratos com o estado, dos fundos do estado e da regulação do estado. O manifesto dos cientistas obedece a essa visão. Parece mais uma proposta de contrato colectivo de trabalho do que uma apologia do poder de transformação da ciência.
Bem sabemos que, se não há mais doutorados nas empresas, não é apenas porque os doutorados não querem. O tecido produtivo nacional é feito de pequenas unidades, muitas vezes geridas por patrões que devem acreditar que um doutorado é um médico especialista – mesmo que nos últimos anos a aposta das empresas em projectos de investigação e desenvolvimento tenha disparado. Mas, como afirmava esta semana o presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira, num debate informal promovido pelo Banco Santander em Salamanca, está na hora de deixar de acreditar que a carreira de um investigador passa apenas pelas universidades. Porque vai ser impossível acolher todos os anos 3000 novos doutorados. Porque a investigação patrocinada pelo estado tem limites. E porque o país precisa de muitos (vá lá, 10%...) dos seus melhores na batalha pelo aumento da criação da riqueza nacional.
Manuel Heitor é um homem que sabe de políticas de ciência, que conhece a universidade, o sistema científico, o país e as suas necessidades. Não deveria colocar o seu nome num documento dominado por um discurso sindical. Os investigadores têm de deixar de considerar o estado como o único ecossistema onde há vida para o seu saber. Se falta hoje uma política de incentivos para eles ou para as empresas, se há falhas na política fiscal, pois bem que se resolvam esses problemas. O que não podemos é acreditar num modelo de ciência feito de bolsas e mais bolsas, quando olhamos para fora e vemos que não foi apenas essa a receita que fez a Suécia ou está a fazer a República Checa.