18 de Maio, Dia Internacional dos Museus: o dever da indignação

Assistimos a uma melhoria da conjuntura económica nacional, mas não há, no mundo dos museus, senão expectativas goradas e sem navegação à vista. Face ao vazio de respostas do actual Governo, faz sentido perguntar: onde estão os princípios, os compromissos e os actos? Para onde caminhamos, afinal?

Os museus estão em festa neste fim-de-semana, proporcionando programas diversificados a todos os tipos de visitantes. Fazem das tripas corações imaginosos porque estes dias celebratórios esgotam as equipas que, quase todas, vivem à beira do ataque de nervos. Há muitas razões para isso mas, em hierarquia esquemática, o primeiro lugar pertence à carência de recursos humanos. Este é um problema que se inscreve no caos que caracteriza a função pública portuguesa, sendo particularmente grave no caso dos 23 museus, palácios e monumentos que estão sob a tutela da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).

Em 2015, um estudo realizado pela própria DGPC permite verificar o envelhecimento das equipas: 58% do pessoal tem mais de 50 anos e apenas 4% se situa no intervalo entre os 25 e os 34 anos. Além disso, é expectável que 120 se aposentem até 2020. Além de poucos, os mais novos técnicos superiores dos museus (conservadores, museólogos, educadores, restauradores, comunicadores, gestores) não entraram nas suas equipas por concursos externos porque, nesta área, os últimos concursos foram realizados pelo então Instituto Português de Museus antes do final do século XX, há cerca de 20 anos! Depois disso, o pessoal dos museus nacionais circula, sendo que, para a maioria, o início desse rodopiar tem origem nas autarquias, única porta ainda semiaberta para se entrar na função pública. Depois transita-se da gestão autárquica para a administração central e entre os vários serviços desta. Ao contrário de professores, médicos e enfermeiros, há pelo menos duas gerações de gente com excelente formação que se preparou para trabalhar nesta área e a quem são feitos acenos convidativos, seguidos de envergonhados despejos. Os de fora, “sem vínculo”, chegam para os primeiros estágios, ainda durante as licenciaturas; apaixonam-se por uma profissão que lhes parece de sonho; os melhores e mais determinados voltam depois para fazerem dissertações de mestrado, prepararem doutoramentos, desenvolverem projectos de investigação, ou a custo zero, ou com pagamentos raquíticos por tarefa, ou, maioritariamente, como bolseiros de doutoramento e pós-doutoramento.

As equipas residentes, em primeiro lugar os directores, apostam neles, ensinam-lhes o que sabem, aprendem com eles e, desesperadamente, vêem-nos partir quando a bolsa termina ou a tarefa não é renovada. Vêm outros, iniciando a mesma via-sacra que dura há décadas e não pára de crescer. Não há racionalidade, não há continuidade, não há rentabilidade. Há sim a imensa responsabilidade de todos os governos de não deixar profissionalizar gerações sucessivas. É razão para perguntar, que presente angustiante é este, que futuro estamos a imaginar?

Quase dois anos depois da entrada em funções deste Governo, não há, no mundo dos museus, senão expectativas goradas e sem navegação à vista. Assistimos a uma melhoria da conjuntura económica nacional e o incremento do turismo tem trazido mais visitantes para os museus, gerando mais receitas. No ano de 2017, os museus, palácios e monumentos sob a tutela da DGPC tiveram um total de 5.060.780 visitantes, o que significa um crescimento de 8% relativamente a 2016. Mais, atendendo aos últimos seis anos (2012-2017), o crescimento é de 60%. Estes dados foram recolhidos no PÚBLICO (12 de Janeiro de 2018) porque as estatísticas oficiais, divulgadas no site da DGPC, apenas estão disponíveis até ao ano de 2016, o que, só por si, dá a ver as inaceitáveis falhas de comunicação que permanecem, metáfora, entre tantas outras, das incapacidades herdadas e cultivadas deste serviço do Estado.

Numa perspectiva externa, estas estatísticas podem alegrar políticos e gerar uma percepção de “desenvolvimento” positivo dos museus. Mas aqueles auspiciosos números não se traduzem em medidas efectivas que combatam as carências do sector, permitindo o seu desenvolvimento real. No entanto, significam um exponencial acréscimo de receitas, sobretudo de bilheteira, antes inimaginável. O dinheiro vivo que todos os dias pinga abundantemente nas caixas dos principais monumentos e de alguns museus transita integralmente, como se sabe, para a administração central, o que os mantém numa opressiva e vergonhosa indigência. Falámos das carências de meios humanos, mas outra dimensão do problema, certamente a montante desta, é a ausência de autonomia de gestão dos museus e monumentos, mas também da sua tutela que alimenta os cofres do Estado (de Centeno?) sem retorno minimamente adequado.

Esta situação esquizofrénica está identificada no programa do actual Governo que, entre as medidas para o sector, prevê a flexibilização dos seus modelos de gestão e que pelo menos alguns deles possam beneficiar de maior autonomia de gestão. No entanto, no recente comunicado do ICOM Portugal, no seguimento de uma audiência com o ministro da Cultura (cf. http://icom-portugal.org/2018/04/18/comunicado-icom-dia-internacional-de-monumentos-e-sitios/), esta questão é remetida para o vazio. O ministro fala de “maior autonomia na gestão científica e cultural”, o que é no mínimo estapafúrdio. É mesmo o que resta aos museus e que nunca poderá ser objecto de decisão ministerial: a sua autonomia “científica e cultural”. Mas para a cumprir, os museus, palácios e monumentos precisam que, segundo célebre enunciado, os deixem trabalhar. O que se pretende apenas é que garantam, a estes serviços, os meios mínimos, em pessoal e orçamento, que um Estado democrático tem o indeclinável dever de garantir, acrescidos, em cada um deles, com uma percentagem expressiva das suas receitas.

Um terceiro eixo de urgência de mudança foi também identificado no programa do actual Governo: a revitalização da Rede Portuguesa de Museus (RPM). Criada por Manuel Maria Carrilho em 2000, como estrutura de projecto no primeiro governo de António Guterres, a RPM é um sistema organizado de museus credenciados (149 museus), instrumento fundamental para a execução da política museológica de acordo com a Lei-Quadro dos Museus Portugueses (2004), apostado na qualificação dos museus de acordo com critérios de qualidade.

Em 2011, a RPM foi barbaramente desmantelada, vítima de não políticas, reduzidas a práticas administrativas de aplicação de cortes cegos. A RPM não desapareceu, embora se tenha tornado nos últimos anos praticamente invisível e com resultados meramente residuais. Também a esta questão o ministro responde nada, ignorando quanto, com poucos meios (a concretizar na reposição do programa ProMuseus), seria possível retomar uma política de partilha e de reforço, capaz de potenciar o trabalho excepcional que alguns municípios têm implementado neste sector, embora sujeitos a excessivas oscilações dependentes de baixas políticas. A verdade é que, para requalificar o interior de Portugal, não basta combater incêndios e implementar eventuais indústrias. A cultura, nomeadamente a que os museus movimentam, é, cada vez mais, uma das instâncias mais férteis, democráticas e prospectivas de construção de um futuro que potencie as heranças como suporte de vida mais justa e mais democrática.

Os tópicos aqui referidos são breves marcações que cabem num artigo de jornal. Entre as depauperadas equipas dos museus, há gente de qualidade superior que trabalha a ritmos inimagináveis, só como a gente apaixonada da cultura consegue trabalhar, entre o vício, a convicção e a inevitabilidade. Habituados a lidar com a História e a confrontá-la com exigentes convicções do presente, sabemos que os ministros passam, os governos também e que os patrimónios que conservamos, estudamos e pomos à disposição de todos, ficarão.

Mas esta certeza não basta. Em Dia Internacional dos Museus, exigimos que o Governo assuma que o seu programa para os museus está mesmo no caixote do lixo. Quais são então os princípios, os compromissos e os actos?

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