Marie Chouinard dança Bosch sem pecado original

Por estes dias, a coreógrafa canadiana apresenta no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, Hieronymus Bosch: O Jardim das Delícias, uma interpretação dançada de uma das mais enigmáticas e fascinantes obras que retratam a humanidade.

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Marie Chouinard concentrou-se na representação da humanidade, dispensando todas as outras figuras do tríptico de Bosch

A primeira medida criativa que Marie Chouinard tomou para abordar em termos coreográficos a obra do pintor holandês Hieronymus Bosch foi mandar colocar no seu estúdio uma ampliação gigante do tríptico O Jardim das Delícias Terrenasobra esmagadora, exposta, desde 1936, no Museu do Prado, em Madrid. O propósito era simples: tanto a coreógrafa canadiana quanto os bailarinos da sua companhia poderiam assim observar até ao mais velado pormenor a riqueza detalhada de uma das grandes obras-primas do período renascentista (ainda que Bosch estilhace quaisquer correntes). Da observação passariam depois à prática, tentando transferir para os seus corpos as posições previamente identificadas em vários dos seres humanos enxertados por Bosch nos três painéis (que se dividem entre Paraíso, Inferno e Génesis).

Começou por aqui a resposta de Marie Chouinard ao desafio que lhe fora lançado meses antes por Adriaan ’s-Gravesande, o director das várias acções programadas para assinalar, em 2016, o 500.º aniversário da morte do pintor holandês. Chouinard aceitou de imediato o convite: “Dei um salto quando ele me perguntou se queria criar uma peça a partir da obra de Hieronymus Bosch, porque o adoro mesmo. Nunca em toda a vida me tinha ocorrido criar inspirada pela sua pintura, mas assim que o convite me chegou tornou-se muito óbvio que era exactamente aquilo que queria fazer.” De seguida, no entanto, recusou a condição que ’s-Gravesande tentou colocar-lhe à partida – a de que deveria evitar centrar-se numa única obra. “Eu aceito”, respondeu, “mas quero fazer algo especificamente sobre O Jardim das Delícias Terrenas”. Se o director artístico do programa Hieronymus Bosch 500 tentou encostá-la à parede, logo Chouinard se libertou dessa limitação e contra-atacou com toda a persuasão para não lhe permitir defesa possível: era aquilo que queria fazer e não havia forma de a demover. ’s-Gravesande conformou-se e aceitou redesenhar as regras do jogo.

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As regras, como se imagina, destinavam-se certamente a evitar que houvesse uma concentração excessiva nas obras mais emblemáticas de Bosch – obras como O Jardim das Delícias Terrenas, precisamente. Não é por acaso que o maravilhamento que Chouinard confessa ter perante os três painéis é tão universal, a ponto de a própria coreógrafa defender que se trata de “uma das obras de arte que estão impressas nas nossas mentes”, num efeito colectivo de alcance planetário. Pormenores de O Jardim das Delícias, aliás, são encontrados facilmente em todo o tipo de manifestações da cultura popular – desde canecas a máquinas de pinball. “É um tríptico tão completo”, diz Chouinard. “Fala tanto de nós enquanto seres humanos. Foi por isso que quis ir por aí.”

Foi esse zoom à humanidade que fascinou a canadiana e a levou a dispensar todas as outras figuras do tríptico, animalescas ou monstruosas, seguindo antes a escolha intuitiva de se centrar no corpo humano que poderemos testemunhar, esta sexta-feira e no sábado, no Centro Cultural de Belém, em Hieronymus Bosch: O Jardim das Delícias. Sem dispensar, no entanto, o grotesco que salta de algumas das imagens – “uma vez que o grotesco também está presente nos humanos”, justifica. Depois de pedir aos seus bailarinos que assumissem as mesmas posições corporais encontradas em cada um dos painéis, tentando absorver também o espírito e o sentimento extraível desses instantâneos, Chouinard começou, aos poucos, a visualizar a sua peça. A seguir, dedicou-se ao exercício igualmente simples de enunciar, um exercício que passava pela ligação entre as várias posições – como partir de uma para outra. “Finalmente, era uma questão de perceber como organizar cada conjunto de posições, como criar pequenos grupos de bailarinos que interpretassem o mesmo movimento, como gerar um coro e um contraponto. Era apenas o prazer matemático da criação, de desenvolver estruturas e ressonâncias, ligações entre os vários elementos. Era o gozo lúdico de organizar uma arquitectura para tudo, de estarmos no meio da criação e seguirmos o fluxo. É isso que adoro no processo criativo: há um ponto a partir do qual é como se não tomássemos decisões; tudo se vai desenrolando como se tivéssemos acertado no código genético.”

Um dos maiores obsctáculos a esta criação descomplicada e fluida haveria de ser a perplexidade repetida todos os dias quando voltavam a demorar os olhos na pintura de Bosch. Havia sempre um corpo em que nunca tinham reparado e que, de repente, reclamava toda a atenção e saltava de pronto para o espectáculo. “É uma história interminável”, diz Chouinard.

Inferno ou dia-a-dia

Marie Chouinard pensa em Hieronymus Bosch como um amigo. E ri-se quando se ouve dizer tal coisa, como se também ela própria se surpreendesse ainda com aquilo que o mestre holandês a faz pensar e proferir. Essa “amizade” é sustentada pela profunda admiração que manifesta pela inteligência, pela compaixão e pelo amor pela humanidade e pelos destinos das pessoas que Chouinard vê em cada centímetro de O Jardim das Delícias. O olhar que foi dedicando e com que foi perscrutando a ampliação da pintura de Bosch fê-la convencer-se de que no painel intitulado Inferno o pintor estará a representar não uma qualquer forma de punição pelos pecados capitais cometidos em vida, mas antes a “observar a vida quotidiana no planeta”. “Nesse painel, os seres humanos estão muito tranquilos e em paz”, continua. “E o Bosch inclui na pintura uma imensa cabeça dele próprio, um auto-retrato em que nos olha com um sorriso e observa essa vida quotidiana. Quando se olha com atenção, não é do Inferno que ele nos fala, mas sim da nossa vida de todos os dias.”

Na pesquisa desenvolvida para a criação de Hieronymus Bosch: O Jardim das Delícias, Marie Chouinard encontrou informação fundamental para reforçar o seu entendimento do quadro central por onde se inicia a peça: o questionamento comum a filósofos e matemáticos na Idade Média sobre o que teria acontecido ao planeta se não tivesse existido pecado original, se Eva nunca tivesse oferecido a maçã a Adão. O centro da pintura de Bosch, acredita, é uma resposta a esta pergunta e, em simultâneo, um lugar povoado por humanos desenvolvidos “em total inocência, sem censura, alegres, simples, comunicando entre si de forma pacífica”. E é essa serenidade que se descobre nos corpos dos bailarinos de Chouinard. Como se, ignorando o pecado original, o mundo também se reinventasse em palco.

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