Spike Lee? Saturday Night Live. Lars von Trier? Aborrecimento em série

A história inacreditável de um polícia negro que se infiltrou no Ku Klux Klan filmada por Spike Lee como um programa de situações humorísticas: uma decepção, este tom. Spike Lee disse que não interessa o que os críticos digam de BlacKkKlansman; para ele, o filme já fica na História. Até pode ficar no palmarés. E não é Lars von Trier a fazer concorrência.

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Spike Lee em Cannes, ladeado pelas actrizes Tonya Lewis e Satchel Lee CLEMENS BILAN/ EPA

Na falta de uma provocadora referência a Hitler de uma conferência de imprensa de Lars von Trier, que viu The House that Jack Built relegado para fora de concurso, tivemos uma imitação de saudação nazi de Spike Lee. Atitudes diferentes, a César o que é de César. Lee reagia à menção na sala a Mein Kampf, de Adolf Hitler, prosseguindo ao vivo o espírito de farsa que percorre BlacKkKlansman, que trouxe à competição de Cannes este agitador histórico do festival, um eterno We Wuz Robbed [2002], segundo ele, das Palmas de Ouro – em 1989, quando Do the Right Thing se perfilava para o prémio e o júri de Wim Wenders guinou para Sexo, Mentiras e Vídeo; em 1991, quando Barton Fink levou tudo, Palma de Ouro, prémio de realização para os Coen e de interpretação para John Turturro, ficando o “favorito” Jungle Fever com um prémio especial, de interpretação secundária, a Samuel L. Jackson.

Lee disse então em Cannes que não interessa o que os críticos digam de BlacKkKlansman, o filme que conta a história real de Ron Stallworth, detective negro da polícia do Colorado que penetrou no Ku Klux Klan no início dos anos 70. Por ele, já fica na História.

E a História americana está no filme e o filme foi apanhado pela História. Já estava rodado quando o realizador viu na CNN as imagens da morte de Heather Heyer, por atropelamento, quando um carro atingiu um grupo de activistas antirracistas que protestavam, em Agosto do ano passado, em Charlotesville, EUA, contra uma manifestação de supremacistas brancos. Lee encontrou nessas imagens o final de BlacKkKlansman – depois de telefonar à mãe de Heather a pedir autorização –, de tal forma ele se apresentava como a coda para um filme de época que queria falar da actualidade.

Num Spike Lee Jointyou gotta flow, não se pode ser rígido“. E tinha de ser, por causa daquele “guy in the White House”, aquele “motherfucker” que ele não quer nomear, ”que não foi capaz de denunciar o Klan” – Spike pediu desculpa pelos palavrões, mas “esta merda que está a acontecer dá vontade de praguejar”. E depois quase que pediu que o calassem, e que fizessem perguntas aos outros membros da sua equipa.

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BlacKkKlansman segue a história real de um detective negro da polícia do Colorado que inflitrou o Ku Klux Klan DR

Hoje Spike diz que já não se consegue lembrar de qual era o final escrito. Efeito estranho que produzem essas imagens, ainda assim. Quando chegam, no final de BlacKkKlansman, produzem uma sensação de redundância, inutilidade mesmo, porque a inacreditável história do polícia negro Ron Stallworth (John David Washington) que contacta o Klu Klux Klan por telefone, infiltrando-se depois através de um seu alter ego branco, o colega Flip Zimmerman (Adam Driver), pareceu sempre um álibi para uma encenação de situações e diálogos a quererem falar da América e de Donald Trump – como num episódio do programa televisivo humorístico Saturday Night Live (e até aparece no início Alec Baldwin, o Trump do Saturday Night Live, a fazer de fascista americano).

Dissemos a “inacreditável” história: foi isso que Lee sentiu quando leu o livro de Stallworth e precisou de se certificar de que tudo tinha acontecido, que não se tratava de um mockumentary em forma de livro. Ora BlacKkKlansman, e apesar da obra, da pesquisa que os actores fizeram, falando com os protagonistas, trazendo para cima da mesa as biografias de Angela Davis e a sua história com os Black Panthers, e o My Awakening: A Path to Racial Understanding em que David Duke explana as suas teorias racistas e de negação do Holocausto, parece participar do esvaziamento das potencialidades da história. Ou, pelo menos, não retira da tensão das cenas, da interacção entre actores e diálogos e até da (falta de) mística das personagens a impressão de programa de situações humorísticas.

Patifaria e aborrecimento

Mas o momento em termos de conferências de imprensa desta 71.ª edição pertence a Spike Lee. Quem sabe, desta vez não será “robbed”. Lars von Trier não está em condições de concorrência. Depois de ter sido considerado persona non grata no festival, por causa da conferência de imprensa em 2011 em que a provocação lhe saiu mal (disse que compreendia Hitler), foi autorizado a regressar com The House that Jack Built, o encontro com os actos de um serial killer (Matt Dillon) ao longo de 12 anos, tal como contados a uma misteriosa personagem interpretada por Bruno Ganz.

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The House That Jack Built: Matt Dillon é um serial-killer DR

Dividido em capítulos, vai explicitando a violência à medida que as exaustivas digressões pela Arte (com citações do cinema do realizador) ficam mais pretensiosas – Dillon, primeiro, é visto a matar, depois ficciona quadros vivos com os cadáveres no congelador, concluindo a casa e a aproximação ao inferno a que o espectador tem direito. Mas o filme perde a capacidade de ilusão. Dillon é sempre de se seguir (se calhar, aconteceria perante qualquer actor e a morte), Lars foi de novo buscar um tema a Young Americans, o disco de David Bowie, e repete várias vezes Fame, o que se ouve com gosto. Mas o equilíbrio entre a patifaria, o lado mais sedutor do cinema do dinamarquês, e a ruminação autocentrada cede, The House that Jack Built é aborrecimento em série.

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