Filho passou de vítima a agressor e as entidades foram “incapazes de pôr cobro ao conflito”
Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica volta a denunciar descoordenação das entidades que actuam nos contextos de violência doméstica.
Um filho que era vítima de violência doméstica passou a agressor da mãe e do padrasto. Ao longo de dez anos, o caso desencadeou vários procedimentos criminais, bem como a intervenção da polícia, dos serviços de saúde e da Segurança Social. Foram, porém, intervenções “meramente reactivas, parcelares, descontinuadas e sem articulação”, segundo o relatório feito pela Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) – um grupo interministerial criado para analisar o que falha nos processos judiciais de homicídios consumados ou tentados em contexto de violência doméstica.
Quando o grupo coordenado pelo procurador Rui do Carmo analisou o processo judicial no âmbito do qual o casal acabou por se refugiar numa casa abrigo e o filho foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão com pena suspensa, a conclusão a que chegou reforça a dos relatórios anteriores: faltou a indispensável coordenação entre as diferentes entidades, essencial para interromper o ciclo de violência nesta família.
Teria cabido às diferentes entidades, do mesmo modo, garantir que fosse o agressor e não as vítimas a afastar-se do espaço doméstico. O que também não aconteceu. De resto, como alerta ainda a EARVHD, o conflito familiar “continua actual e prossegue”, conforme atesta o mais recente relatório da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais que, em Janeiro, apontava o “risco de reincidência”.
O agressor, 28 anos, solteiro, pensionista por invalidez, com um historial de consumo de estupefacientes e diagnósticos desencontrados sobre a sua saúde mental, foi condenado no dia 24 de Abril de 2017 a uma pena de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período de tempo com regime de prova assente num plano de reinserção social, pelos crimes de homicídio simples na forma tentada, ameaça agravada e violência doméstica.
As vítimas eram a mãe e o padrasto, com quem o agressor vivia. E aos quais extorquia dinheiro, ameaçando que os matava se não o obtivesse. “Corto-vos o pescoço” era uma frase repetida. Numa das vezes esmurrou o padrasto e trancou a mãe à chave quando esta o tentou impedir. Noutra, preparava-se para desferir um golpe na cabeça do padrasto, com um objecto semelhante a um martelo, quando foi empurrado pela mãe.
O relatório social testemunhava que o agressor fora afastado da mãe entre os 7 e os 14 anos de idade. E que evidenciava desde há muito um “comportamento agressivo, desadaptado e um estilo de vida anti-social”. Consumia haxixe diariamente e tinha uma vida desestruturada. Chegou a viver sozinho, numa casa cuja renda era paga pela mãe, até que, em Junho de 2015, reintegrou o agregado familiar. Dois meses depois, face às ameaças e violência física grave continuada, mãe e padrasto, convencidos de que poderiam ser mortos, aceitaram ingressar num acolhimento de emergência.
O caso foi comunicado pela GNR ao Ministério Público. E na ficha de avaliação o risco de violência foi considerado elevado. Apesar disso, a GNR não deteve o agressor por, conforme explicação adiantada depois à EARVHD, não estarem “reunidos os pressupostos que se aplicam à detenção em flagrante delito” e por a detenção fora de flagrante delito não se mostrar “imprescindível” para a protecção das vítimas.
Diagnósticos psiquiátricos desencontrados
Mas os alvos da violência foram variando ao longo de pelo menos dez anos nesta família. Às vezes, o padrasto desentendia-se com a mulher a quem chegou a partir um braço. Então, era o filho quem procurava proteger a mãe, tornando-se também ele vítima às mãos do padrasto, ao qual fora diagnosticado “um transtorno de personalidade de tipo impulsivo”. Poucos anos depois, em 2010, chegam novas queixas às autoridades, mas desta vez apresentadas pelo casal contra o filho/enteado. A extorsão de dinheiro ao casal incluía ameaças de cutelo na mão e cães de raça perigosa. A PSP atribuiu ao casal o estatuto de vítima, mas, como estes desistiram da queixa, o Ministério Público acabou por arquivar o processo.
Novas queixas deram origem a novos processos. O filho, já como agressor, foi avaliado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais que concluiu, em 2012, que fora, enquanto criança, “alvo de maus-tratos físicos e manipulação afectiva”. O diagnóstico médico a que foi entretanto sujeito imputa-lhe “uma deficiência mental moderada, com alterações de comportamento de tipo psicótico”. Então, uma vez mais, foi determinada a suspensão provisória do processo, ficando o jovem obrigado pelo Ministério Público a frequentar um curso de serralharia. Curso esse que abandonara antes mesmo do despacho de concordância do juiz de instrução, “o que não mereceu contestação pelo MP”, lê-se no relatório. No ano seguinte, o MP determinou o arquivamento do inquérito.
Dois anos depois, uma nova avaliação clínico-psiquiátrica resultaria num diagnóstico de esquizofrenia. Que viria a ser desmentido por nova avaliação, concluída em Novembro de 2015. Esta descrevia-o como agindo “de forma imediatista e de acordo com os seus caprichos, eventualmente potenciados pelo consumo de substâncias psicotrópicas” e imputava-lhe um perfil de “violador e ou de homicida”, recomendando consequentemente medidas de contenção.
Já na Segurança Social um processo aberto em 2010 dava conta de que o casal estava separado, embora continuasse na mesma casa “por inexistência de alternativa habitacional”. A mulher ter-se-ia queixado que o marido sofria da doença de Alzheimer e que expulsara o filho de casa. Pedia ajuda financeira para custear a medicação dela e do filho e para pagar a renda de casa. O perfil das queixas mudou em 2015, ano em que o filho começou a surgir como agressor do casal que requeria, por isso, o seu afastamento.
Quando a EARVHD perguntou à Segurança Social que medidas haviam sido tomadas para prevenir a continuação e agravamento da escalada de violência, por um lado, e se fora estabelecida comunicação com outra entidade capaz de intervir naquele agregado, a resposta foi negativa: “Não foi efectuada qualquer comunicação com outra entidade, por não termos tido a percepção/entendimento, no imediato, de que estávamos perante uma situação de violência doméstica, mas sim perante uma situação de conflitualidade entre os elementos”.
Respostas “isoladas e pouco assertivas”
A análise retrospectiva, que situa o início dos conflitos em 2005, constata que a família foi alvo da intervenção de diferentes entidades ao longo dos anos. Porém, nenhum dos intervenientes foi capaz de garantir “comunicação e diálogo” com as demais entidades, limitando-se a reagir às diferentes e sucessivas queixas com “respostas isoladas e pouco assertivas”.
No caso da Segurança Social, acusa a EARHVD, “a acção desencadeada foi apenas reactiva” e limitada “ao tratamento das questões respeitantes a prestações sociais”, quando o que se impunha era “uma abordagem do conflito e desestruturação familiares”, com encaminhamento para as entidades capazes de intervir adequadamente.
Do mesmo modo, nenhum dos três processos crimes abertos pelos actos de agressão em que estiveram envolvidos mãe, filho e padrasto lograram “contribuir para a prevenção de comportamentos agressivos futuros ou para a (re)integração social do filho. “Os dois primeiros foram arquivados por terem sido admitidas desistências de queixas apesar de inicialmente os factos terem sido considerados como podendo constituir crime público”, conclui a equipa de Rui do Carmo: no terceiro, o plano de conduta a cumprir pelo filho abdicou da obrigatoriedade de frequência do curso de serralharia, “uma obrigação considerada relevante para a sua ressocialização e para a satisfação das exigências de prevenção”.
No campo da Saúde, verificaram-se ao longo do tempo “discrepâncias grosseiras na informação sobre o diagnóstico” do rapaz, que oscilou entre a deficiência mental e a esquizofrenia, posteriormente desmentida. Essas discrepâncias incidiram também na avaliação do seu grau de perigosidade.
A GNR, por seu turno, também sai beliscada. Porque a detenção do agressor “teria permitido que lhe fossem aplicadas pelo juiz de instrução medidas de coacção e controlo, que impedissem que as vítimas tivessem de abandonar a sua própria residência”.
Pese embora o contacto das várias entidades nos dez anos que precederam os factos. “nunca foi interrompido nem contido o ciclo de violência neste agregado familiar”, conclui a EARHVD. Faltou “circulação e transmissão de informação, diálogo, articulação e definição de uma qualquer estratégia entre serviços e entidades para lidarem com esta disfuncionalidade e conflito familiares”. Houve “descontinuidade e pouca assertividade” nas intervenções. As quais foram “meramente reactivas, descontinuadas e assentes num conhecimento parcelar do problema”.
Logo, as autoridades ficaram muito aquém do previsto pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, que tem na “cooperação eficaz entre todos os organismos” uma das principais chaves de actuação.
Acresce que a opção tomada em 2015, de privilegiar a retirada das vítimas da sua residência e a pouca firmeza na relação com o agressor, “representou a continuidade de uma acção titubeante” face a este quadro de violência familiar, seja no que respeita à protecção das vítimas, seja no que respeita à contenção do agressor".