MP não fez nada. Mulher morreu 37 dias depois de ter apresentado queixa
Magistrada deixou que “o processo seguisse a sua marcha burocrática” em vez de accionar os mecanismos previstos na lei e que teriam permitido concluir que havia elevado risco de a mulher ser vítima de novos episódios de violência.
A conclusão é taxativa: o Ministério Público (MP) de Valongo não accionou nenhum dos mecanismos previstos na lei para proteger uma mulher que acabaria por morrer às mãos do marido, 37 dias depois de se ter dirigido àqueles serviços para apresentar a primeira queixa. Por isso, Maria (nome fictício) acabou morta no chão da sua cozinha, para onde foi arrastada depois de agredida à paulada pelo marido que lhe provocou lesões crânio-meningo-encefálicas que se revelariam fatais.
“Decorreram 37 dias sem que tivesse sido impulsionada qualquer decisão quanto a medidas de protecção em benefício da vítima ou quanto a medidas de coacção a aplicar ao agressor”, acusa a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Contexto de Violência Doméstica (EARHVD) – um grupo interministerial criado em Janeiro de 2017 para analisar retrospectivamente o que falha nos processos judiciais de homicídios consumados ou tentados em contexto de violência doméstica. Neste segundo relatório, o grupo coordenado pelo procurador Rui do Carmo repete as críticas que já haviam sido feitas à actuação do MP aquando da análise do primeiro caso de homicídio conjugal: o risco foi subestimado e as diligências débeis e pouco adequadas.
"Não te vou sair da porta"
O homicídio conjugal recua ao dia 4 de Novembro de 2015 e contextualiza-se em poucos parágrafos. Maria, então com 55 anos, conhecera João (nome também fictício), 13 anos mais novo, em Novembro de 2014. Ela jardineira, ele trabalhador da construção civil no desemprego. Quando decidiram casar, em Janeiro de 2015, ficaram a viver na casa dela, em Valongo, na periferia do Porto.
No dia 23 de Setembro do mesmo ano, Maria obriga João a sair de casa. Houve discussões com direito a agressões físicas presenciadas pelos vizinhos. Datam dessa altura ameaças do género: “Tu não vais ter sossego, não te vou sair da porta, vou-te matar filha da puta”. Inconformado com a ruptura, João vigiava e controlava os movimentos da ainda mulher. Telefonava-lhe insistentemente. O medo de Maria levou-a a colocar trancas de madeira na janela.
Para se proteger, no dia 29 de Setembro, Maria dirigiu-se aos serviços do MP de Valongo, onde apresentou uma queixa contra João. No auto de “apresentação de queixa”, analisado pela EARHVD, lê-se apenas “agressão e ameaças”. A análise aos procedimentos subsequentes mostrou que o passo seguinte foi um despacho, de 8 de Outubro, em que a magistrada mandava notificar Maria para que esta, num prazo de 10 dias, esclarecesse o teor da sua queixa. O que esta fez por escrito, alegando ter sido vítima de socos, empurrões e ameaças do tipo “rebento-te a cabeça se fizeres queixa de mim”. No dia 26 de Outubro, a magistrada ordena nova inquirição a Maria capaz de ajudar o tribunal a avaliar se estavam “perante um crime de violência doméstica” susceptível de justificar o accionamento do estatuto de vítima.
Esta nova inquirição ficou marcada para o dia 4 de Novembro, às 14h00. Maria voltou a descrever os diferentes episódios de violência. Ainda assim, saiu do tribunal sem que lhe fosse atribuído o estatuto de vítima. Do mesmo modo, não foi feita qualquer avaliação de risco nem equacionada a aplicação das respectivas medidas de protecção.
No dia seguinte, 5 de Novembro, a magistrada emitiu um despacho em que pedia que, “em data disponível em agenda”, se procedesse à constituição de João como arguido, “seguida de interrogatório e sujeição a termo de identidade e residência”. Não sabia a magistrada que, nessa altura, Maria jazia morta. Na tarde do dia 4, João dirigira-se a casa de Maria e escondeu-se no quintal até que esta voltou do tribunal. Quando Maria se encaminhava para a porta da cozinha, desferiu-lhe uma pancada na cabeça com um pau. E outra e mais outra, até que a mulher caiu inanimada no chão do quintal. Depois, arrastou-a para o interior da residência e saiu, fechando a porta à chave.
Não aceitou o fim do casamento
O corpo só foi encontrado no dia 7 de Novembro. O tribunal considerou que João agiu de forma “deliberada e consciente", “apenas movido por ciúmes e porque não aceitou que a mesma não quisesse reatar o casamento”. Sem qualquer doença psiquiátrica diagnosticada, com o relatório de psiquiatria forense a apontar-lhe apenas “uma grande dificuldade em tolerar a frustração”, o que o levava a “manifestar comportamentos agressivos como forma de gestão da tensão emocional gerada”, João foi condenado a 16 anos de cadeia.
Entre familiares e vizinhos, João era tido como pessoa “educada, trabalhadora", não tendo sido alvo de qualquer tipo de rejeição”. Quando este comentou, num café, que tinha matado a mulher, ninguém o levou a sério. De resto, a conflitualidade entre os dois, apesar de conhecida, nunca levara ninguém a intervir, apesar de a violência doméstica ser já então um crime público. A autópsia viria a revelar que Maria tomava tranquilizantes.
Tanto como o silêncio da comunidade, a EARHVD aponta sérias falhas na actuação do MP. “Nunca tratou a denúncia apresentada como um efectivo caso de violência doméstica, ou seja, nunca deu cumprimento às exigências que a lei impõe no tratamento das denúncias e na investigação do crime”, acusa. O atendimento da vítima "foi efectuado por quem não tinha preparação técnica para o efeito”. Acresce que a magistrada do MP “tratou a denúncia sem qualquer urgência e sem atender à natureza dos factos", deixando que o inquérito seguisse “a sua própria marcha burocrática, distante dos apelos de intervenção da vítima”.
“Se o mecanismo de avaliação de risco tivesse sido desencadeado pelo Ministério Público (…), ter-se-ia concluído que resultava [para Maria] um risco elevado de ser vítima de novos episódios de violência doméstica”, precisa a equipa liderada por Rui do Carmo. No final, sobra a recomendação para que a Procuradoria-Geral da República elabore um “documento hierárquico de boas práticas”. Objectivo: acabar com a actual dispersão do regime legal e concretizar e dar coerência às orientações que os serviços e magistrados do MP devem implementar no domínio da violência doméstica.
As recomendações não se ficam pela área da justiça. Porque a comunidade em que se inseriam João e Maria deu mostras de entender a violência no casal como “uma questão íntima, interior ao agregado familiar, silenciada e tacitamente aceite”, a EARHVD recomendou à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género que envolva os municípios na promoção de campanhas de sensibilização capazes de “desconstruir crenças, mitos e estereótipos” responsáveis pela perpetuação da violência contra as mulheres e potenciadoras de relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres.