Momento Go, Girls: da China ao Curdistão e com Lara, que se chamava Victor
Três actrizes iranianas e o preconceito, um batalhão feminino de libertação do Curdistão, a mulher do seu mafioso e Lara, que se chamava Victor. Tropeça-se em bons filmes.
De Jafar Panahi, impedido pelas autoridades iranianas, como se esperava, de vir a Cannes apresentar Three Faces (competição), continua a ser difícil imaginá-lo a realizar filmes. A imagem é turva. Desde 2010, quando as autoridades o consideraram culpado de “propaganda contra o Estado Islâmico” e o sentenciaram a prisão domiciliária e proibição de realizar, a sua vida mudou drasticamente. Mas isso foi mudando. Como é que ele faz? Era impossível não procurar nos filmes – no desespero de Isto Não é um filme (2011), por exemplo, que saiu do Irão numa pen dentro de um bolo, ou na bonomia, alguma pelo menos, de Táxi (2015) – os sinais do que pudessem ser o estado de espírito do realizador e das condições em que vivia e trabalhava. É o que se faz agora: procurar Jafar Panahi em Three Faces.
Os seus colaboradores, a montadora Mastaneh Mahojer e o director de fotografia Amin Jafari, falam de um artista “engenhoso” que “sabe o que quer”, que encontra soluções para responder ao argumento que tem debaixo do braço, que sabe que há cenários mais expostos à vigilância do que outros – mas, sublinham, nunca uma rodagem de Panahi, nem mesmo antes de 2010, foi “standard”. Mastaneh Mahojer e Amin Jafari falavam em Cannes ao lado cadeira vazia com o nome do cineasta.
Panahi está em Three Faces. Como o realizador Panahi. É a ele que chega, por telemóvel, o vídeo de uma adolescente, um desesperado pedido de ajuda mas, possivelmente pelo que as imagens captadas numa gruta mostram, até mesmo um suicídio. A rapariga, Marzieh, foi impedida pelo conservadorismo dos pais de viver a sua vida: ser actriz.
Panahi pede ajuda a uma amiga, uma estrela do teatro e do cinema iraniano (Benhaz Jafari, a fazer de si própria) e partem à procura de Marzieh pelo Azerbaijão iraniano. Onde se cruzam com uma terceira mulher, uma actriz que vive recolhida, ignorada, antiga estrela de antes da revolução. Nunca vemos o seu rosto, só algumas das personagens o encaram, mas essa “presença”, e sabemos que está lá, fica connosco.
O recolhimento talvez seja o rosto escondido de Three Faces, filme de gestos menos expressivos ou delineados do que os de Isto não é um filme ou Taxi – o próprio Panahi desvia as atenções de si —, que até parece perder-se, e perder a sua determinação, ao longo das estradas, mas que é percorrido por uma melancolia, uma branda resignação, no encontro com uma sociedade de preconceitos atávicos. Sem sinais evidentes de “filme político” que desafia – por isso a equipa de Three Faces diz que Panahi tem esperança de que possa estrear no Irão, esse é o seu desejo, e se para isso ele tivesse de abdicar de Cannes tê-lo-ia feito —, tem pontas para puxar para ser sintonizado com as afirmações deste tempo: às actrizes, por exemplo, foi-lhes perguntado o estado das coisas no Irão na era pós-Weinstein…
Luminoso tropeçar em Girl
Um tenaz retrato de senhora: Ash is the Purest White, de Jia Zhangke (competição), que o cineasta chinês oferece à sua mulher e inspiração, Zhao Tao. E com ele oferece-nos o melhor dos seus últimos filmes, síntese e superação de A Touch of Sin (2013) e Mountains May Depart (2015). Isto é, confirmando que Jia é hoje um cineasta diferente do de Plataforma (2001), porque começou a sublinhar as formas do thriller ou do melodrama nos retratos em movimento da China contemporânea, livra-se aqui da tentação Grand Guignol de A Touch of Sin (o realismo de uma magnífica cena de pancadaria arruma a concorrência mas não faz o filme refém de um exercício ou de um estilo) e consegue integrar as habituais guinadas a que o realizador submete as personagens sem parecer, como em Mountains May Depart, uma prova de esforço.
Na verdade há uma mulher mas também há um homem e o casal Zhao Tao e Liao Fan é puro par de cinema à maneira clássica, comovente na forma como reage ao Tempo e à História, ele um pequeno boss do underworld, ela a sua boneca, que por ele se sacrifica. O filme é isso, o casal, o melodrama – é o que Ash is the Purest White é –, a ser transfigurado, alterado e melancolicamente perdido ao longo de duas décadas.
Das muitas coisas que se podem apontar contra Les Filles du Soleil, de Eva Hudson (competição), é que não tem personagens. Tem muito para estar no centro das atenções – história de um batalhão feminino de libertação no Curdistão, uma causa de libertação nacionalista e uma causa de libertação feminina contra o Estado Islâmico. Mas, na sua segunda longa (depois de Bang Gang), Hudson está tão mal no íntimo quanto no aventureiro e não consegue, ao trabalhar a relação entre uma guerrilheira (Golshifteh Farahani) e a jornalista francesa que acompanha o batalhão em reportagem (Emmanuelle Bercot), mais do que um kitsch de situações e previsibilidades. Fica com a política.
É por isso algo luminoso tropeçar em Girl, primeira longa do belga Lukas Dhont, cineasta de 26 anos, que fez um acontecimento na secção Un Certain Regard. Dhont foi buscar à história verídica, que leu no jornal, de um rapaz que aspirava a ser bailarina, e a mudar de sexo, a personagem de Lara, que é interpretada por um jovem actor, e também bailarino, Victor Polster – escolhido depois de sessões de casting que foram abertas quer a rapazes quer a raparigas. O que é sobretudo de admirar em Girl, e faz dele uma ficção justa, é a forma como permite ao espectador construir com ele uma relação misteriosa e interior – uma comunicação com os silêncios do filme e da personagem. No exterior, o mundo que rodeia Lara não é intolerante ao seu processo. E havendo sinais físicos de que nasceu rapaz, que nasceu Victor, a sua feminilidade espraia-se fulgurante. Mas há a angústia, o mal-estar e a urgência de Lara, que enfrenta os treinos para se afirmar na aprendizagem da dança e o programa para se desembaraçar de um corpo e construir outro. Questão de trabalho de realizador e questão de trabalho de actor, é um pequeno filme totalmente livre do previsível.