Mais de 136 mil crianças e jovens sem médico de família atribuído
Desde 1 de Janeiro até ao início de Março deste ano que perto de mil recém-nascidos também estavam sem médico de família atribuído, apesar da lei que estipula que os bebés devem ser inscritos nos centros de saúde à nascença.
Há mais de 136 mil crianças e jovens com menos de 18 anos sem médico de família atribuído. E desde 1 de Janeiro até ao início de Março deste ano que perto de mil recém-nascidos também estavam nesta situação, apesar de desde Setembro de 2016 estar em vigor o projecto Nascer Utente, que estabelece que a todos os bebés é atribuído um médico de família à nascença. Os centros de saúde dizem que precisam de mais 403 clínicos para garantir cobertura de toda a população.
O levantamento resulta das perguntas enviadas no início de Março pelo Bloco de Esquerda aos 55 agrupamentos de centros de saúde (Aces) do país: “quantas crianças recém-nascidas, desde 1 de Janeiro de 2018, não têm médico de família atribuído neste Aces?” e “quantas crianças em idade pediátrica não têm médico de família atribuído neste Aces?”.
Responderam 47 Aces. Resultado? Desde 1 de Janeiro que existem 968 recém-nascidos sem médico atribuído. Já no que diz respeito a crianças e jovens em idade pediátrica, o número ascende a 136 mil. Esta é a segunda vez que os bloquistas querem saber se a lei de Setembro de 2016 está a ser cumprida e qual o universo de crianças e jovens impossibilitados de ter um acompanhamento regular nos cuidados de saúde primários.
A primeira foi em Maio do ano passado, quando perguntaram aos centros de saúde quantos recém-nascidos não tinham, desde Setembro de 2016, médico atribuído, repetindo a questão para as crianças até aos 18 anos. Nessa altura havia 4098 bebés e 108 mil crianças nesta situação.
“Os números resultantes das perguntas de 2017 eram claramente preocupantes. Houve uma evolução, mas a lei continua longe de ser cumprida. Temos quase mil recém-nascidos sem médico de família atribuído e houve uma evolução negativa quando olhamos na idade pediátrica. É preciso encontrar uma solução, porque nestas idades é particularmente importante, sobretudo nos primeiros anos de vida, haver um acompanhamento mais regular e uma maior vigilância. O que nos preocupa é que, não estando atribuído um médico a estes recém-nascidos, crianças e jovens, esta vigilância esteja a ser prejudicada”, diz ao PÚBLICO o deputado do BE, Moisés Ferreira.
Lei em vigor desde Setembro 2016
A lei que criou o projecto Nascer Utente é de 2015, na altura com o PSD e o CDS no Governo, mas só foi regulamentada e entrou em vigor em Setembro de 2016 com o PS já no executivo. O despacho que estipula as regras é muito claro: “a inscrição das crianças no âmbito do Projecto Nascer Utente é efectuada de forma automática pela instituição com bloco de partos, na lista de utentes do médico de família da mãe e/ou pai, prevalecendo a da mãe, no caso dos pais se encontrarem inscritos em listas diferentes.”
Acrescenta ainda que nos casos em que nem o pai nem a mãe tenham médico de família atribuído, a maternidade “deve comunicar” o nascimento “ao coordenador da unidade funcional [Unidade de Saúde Familiar (USF) ou Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP)] mais próxima da residência da criança, o qual deve proceder à inscrição da mesma na lista de utentes de um médico de família”.
“O Governo não pode ficar só por anunciar legislação sem se preocupar que ela seja cumprida. Tem de fazer cumprir a lei para os recém-nascidos e tem de fazer mais para contratar médicos de família, garantindo que os mais novos e os mais idosos, pela carga de doença, têm prioridade. Infelizmente, o Governo parece ficar mais pelos anúncios, não vai ver o que está a ser cumprido no terreno e no último ano e meio tem contribuído negativamente para a não resolução do problema com atrasos nos concursos para a colocação de médicos de família”, aponta Moisés Ferreira, referindo que o BE continuará a fiscalizar a aplicação da lei e a repetir as perguntas junto dos centros de saúde.
Nas respostas enviadas ao BE, muitos Aces explicam que mesmos sem médicos de família atribuídos, os recém-nascidos que procuram os serviços são seguidos na consulta de vigilância em saúde infantil e que o acesso aos cuidados de saúde não está comprometido. Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Família, salienta que além de garantido o atendimento em situações de doença aguda, “devia estar a ser garantida a vigilância que fica perdida sem um médico de família atribuído”.
O clínico salienta que os dois primeiros anos de vida da criança, a consulta dos 5/6 anos e a dos 12 anos são fundamentais e que devia ser encontrada uma solução para que a lei seja cumprida em relação aos recém-nascidos e para que a idade pediátrica seja uma prioridade.
De acordo com os dados do Portal do Serviço Nacional de Saúde, a 31 de Janeiro deste ano havia 723 mil utentes sem médico de família. A região com maior défice era de Lisboa e Vale do Tejo, com 533 mil utentes nestas condições. Rui Nogueira destaca o facto de entre os 17 Aces com mais recém-nascidos sem médico atribuído estarem todos os que fazem parte desta região.
“É uma expressão claríssima da falta de médicos. Isto significa que 86% dos recém-nascidos sem médicos estão nesta região, valor sobreponível ao da idade pediátrica (83,5%). É preciso avançar com medidas estratégicas para a contratação de médicos nesta região, porque apesar de estarmos próximos de ter um excedente de médicos de família no país, aqui vamos continuar a ter um problema”, afirma.
403 médicos em falta
“A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, muito embora se depare com uma carência de médicos especialistas na área de medicina geral e familiar, tem envidado esforços no sentido de garantir a acessibilidade a grávidas, recém-nascidos, crianças e jovens aos cuidados de saúde”, explicam todos os Aces que pertencem a esta região nas respostas enviadas ao BE.
O partido quis saber também quantos médicos cada Aces estima serem necessários para dar cobertura a toda a população que têm inscrita. A soma de todas as respostas aponta para uma necessidade de mais 403 médicos de família. Moisés Ferreira e Rui Nogueira lembram os atrasos no lançamento dos concursos para colocação dos mais de 70 jovens clínicos que terminaram a formação da especialidade em Outubro do ano passado e que ainda não foram colocados.
“Neste momento estamos a aguardar a abertura do concurso para os médicos que terminaram agora (30 de Abril) a especialidade. São 334 que deverão ter as notas homologadas por estes dias para que se possa dar início ao processo”, afirma Rui Nogueira, acrescentando que é preciso ser célere no processo de forma a ajudar a diminuir o número de utentes sem médico. Já neste ano o Parlamento aprovou dois projectos de resolução que recomendam a abertura de concurso em 30 dias após a conclusão da especialidade.
O PÚBLICO questionou o Ministério da Saúde, mas não obteve resposta.