O regresso de Martin Scorsese ao local do crime e aos seus malfeitores

A Quinzena dos Realizadores homenageou o autor de um dos filmes que marcaram para sempre a secção quando programou Mean Streets em 1974 – e o cinema contemporâneo como o conhecemos deve algo a essa sessão. Fê-lo regressar ao local do crime, rodeado no palco por outros cineastas.

Martin Scorsese, Ruas Malvadas, Bowery, Rainhas
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Martin Scorsese em 1973 na rodagem de Mean Streets. Jack Manning/New York Times Co./Getty Images
Cannes, Isabelle Adjani
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Thierry Frémaux, 2018 Festival de Cannes, 71º Festival de Cannes, Cannes, diretor de cinema
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Nariz, testa, bochecha
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Martin Scorsese, Festival de Cannes, diretor de cinema, Cinematografia
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Jacques Audiard lançou a Martin Scorsese: se um realizador faz um filme para responder a uma pergunta que o inquieta, qual era a pergunta que ele fez que o levou a realizar Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto (1973)? Foi uma pergunta que ainda não teve resposta, respondeu Scorsese. Por aqueles anos, os da década de 70, era mesmo a questão que o acompanhava já desde criança e jovem adulto: “A de que o mundo é um lugar perigoso, cheio de gente má e de algumas boas pessoas – ou as duas coisas num mesmo indivíduo. Como é que se tem uma vida moral num mundo que não o é?”

Este início de conversa ocorreu na quarta-feira no Festival de Cannes, quando, para celebrar os seus 50 anos, a Quinzena dos Realizadores homenageou o autor de um dos filmes que marcaram para sempre a secção alternativa que o programou em 1974. A Quinzena fê-lo regressar ao local do crime e de novo com Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto, rodeou-o no palco de outros cineastas, Audiard, Cédric Klapisch ou Bertrand Bonello, perguntas e carinho… e não foi preciso mais para muito acontecer…

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Martin Scorsese no Festival de Cannes há dois dias EPA/Nicholas Hunt / POOL

Por ter sido apresentado na Croisette, Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto mudaria a vida de um jovem asmático hiperactivo que em 1974, ainda desconhecido, andava de esplanada em esplanada a encontrar “financeiros duvidosos” e outras estrelas, a falar de cinema com Wim Wenders ou Herzog, a ouvir de gente como Pierre Rissient (há dias desaparecido) ou Bertrand Tavernier tudo o que podia aprender sobre a geografia precisa dos filmes de Raoul Walsh ou sobre os filmes de série B esquecidos do ignorado John H. Auer para a Republic Pictures.

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Martin a dirigir os actores Cesare Danova ?e Harvey Keitel na rodagem de Mean Streets (1973) Herbert Dorfma/getty images

Ao passar em Cannes, Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto foi “a very clear beginning” para Scorsese, mas é claro também que o cinema contemporâneo como o conhecemos deve algo a essa sessão de 1974. Uma das coisas emocionantes ao vê-lo agora no local onde “aconteceu” há 44 anos é tentar imaginar o impacto sobre aquele espectador desta espécie de home movie que revelava as ruas, a família e os amigos de Scorsese, um mundo italo-americano em negociação com a lei e com a moral, as explosões de amor e humor entre Robert de Niro/Johnny Boy e Harvey Keitel/Charlie – apresentando as personagens como se as fizesse “sair” de canções, Be my baby, das Ronnettes, no caso de Charlie, Jumpin Jack Flash, dos Stones, no de Johnny Boy –, o frenesi, o desejo e a violência com que o filme estimula as personagens. Não escapa que é o próprio Scorsese, que, numa figuração algo tenebrosa numa das cenas finais, possibilita o orgasmo cinematográfico de Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto, enchendo de tiros, estilhaços de vidros e de sangue (e abrindo um repuxo de água...) os corpos de Charlie e de Johnny Boy, que já se tinham começado a excitar com o fogo quando assistiam a uma sessão de The Tomb of Ligeia/O Túmulo de Ligeia (Roger Corman, 1964).

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De Niro em Mean Streets (1973)

As torturas da carne e do espírito de Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto, aquele “You dont make up for your sins in church. You do it in the streets. You do it at home. The rest is bullshit and you know it” que se ouve no início e que deveria ser a “voz” da personagem de Keitel e do seu dilema, culpa e queda (na realidade é a voz de Scorsese), a interacção entre Johnny Boy e Charlie… tudo isso, que se tornaria o núcleo temático e figurativo do cinema do realizador, foi fixado aqui. Como se estas personagens já fossem o Cristo e o Judas que mais tarde seriam de Willem Dafoe e de Harvey Keitel no filme de 1988 A Última Tentação de Cristo ou a figura “crística” e a figura do “traidor”, Andrew Garfield e Liam Neeson, em Silêncio (2016), filme que, por isso, exalava um perfume de redundância, parecia ter sido já feito em Little Italy.

“Sinto que hoje me interesso por personagens, carregadas de masculinidade e de intensidade, que reflectem os dilemas desses filmes iniciais”, assumiu (referia-se também a Whos that Knocking at My Door/Quem Bate à Minha Porta?, de 1967). “Quando se vive num mundo mau, que hipóteses há de haver algum bem? Muito de Mean Streets tinha que ver com o que eu estava a sentir. Mas demorei algum tempo a perceber que o filme tinha que ver, na relação entre Harvey e Bobby de Niro, com o meu pai e o seu irmão mais novo. O meu pai estava sempre a ‘fazer favores’ [à Mafia, como a personagem de Keitel], e a minha mãe sempre a dizer-lhe: ‘Não faças, não faças…’ Foi decisivo para mim o encontro com um padre, que me acompanhou entre os 11 e os 17 anos, que me fez perceber que temos de ambicionar mais. Por isso explorei na minha vida as questões do amor e da compaixão. A alternativa a isso teriam sido a violência e o crime. É verdade que as ruas também foram experiências de amor. Mas eu sentia que havia algo de errado. E que algumas das pessoas que faziam o mal também eram óptimas pessoas. O que somos intrinsecamente, afinal? Por isso aquela voz off no início de Mean Streets: ‘Não nos podemos redimir dos nossos pecados na igreja, temos de fazer isso na rua.’ E podemos não conseguir.”

Era a tragicomédia diariamente nas ruas. Scorsese nota que o humor era importante no mundo de malfeitores de onde veio, “é uma parte da sedução dos sociopatas”. Mean Streets/Os Cavaleiros do Asfalto está imbuído de burlesco, por exemplo. Mas não há propriamente comédias no cinema do realizador. Nova Iorque fora de horas (1985)? “Esse é mais um pesadelo.” O Rei da Comédia (1982)? “Não, esse não é uma comédia. Tenho dificuldades em enfrentar esse filme. Fui precipitado para ele por Robert de Niro, que o queria muito fazer. Havia dias em que eu não queria aparecer no plateau, ficava o Jerry [Lewis] à espera. Eram tempos difíceis para mim. Havia muita coisa de mim na personagem do Ruppert [de Niro].” Aponta o sinal de experiência claustrofóbica: não há quase movimentos de câmara nesse filme, ele não a queria mexer.

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De Niro em Taxi Driver (1976)

A propósito: Bertrand Bonello notou haver poucas imagens de Scorsese no plateau, em trabalho. Marty mostrou então um pouco dos hábitos. Disse que sendo um produto do operariado, de uma casa sem livros, sofrendo terrivelmente de asma, rodeava-se de cinema e de música – que o levavam a transformar os dramas da rua e da casa em desenhos, como se fossem já story boards. Ainda hoje precisa de se isolar, duas semanas antes de cada rodagem, para “desenhar todo o filme”. É a forma de se sentir seguro. “Todas as cenas de boxe de Toiro Enraivecido [1981] foram desenhadas por mim, o mesmo em Mean Streets e Taxi Driver [1976], mas nesse caso também por causa do pouco tempo de rodagem. Contudo, em alguns casos deixo de fazer desenhos, espero para estar com os actores no décor” – influência, diz, do cinema de Elia Kazan, de East of Eden/ A leste do Paraíso ou de Wild River/Quando o Rio Se Enfurece, “em que Kazan punha a câmara em frente aos actores e pronto”, influência ainda de um Ford de 1961, Two Rode Together/Terra Bruta.

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De Niro em Toiro Enraivecido (1981)

“Os diálogos em Toiro Enraivecido… foram escritos depois do encontro com os actores no décor. Filmámos todas as cenas de combate no início, durante dez semanas, quando decidimos que o filme seria a preto e branco, e depois de termos despachado isso é que filmámos o resto. Os diálogos foram trabalhados a partir dos décors e dos actores.” Isto é: espera, apesar de querer controlar o filme, que o imprevisto aconteça. Se não fosse assim, exemplifica, não teria acontecido o “Are you talkin’ to me” de Taxi Driver, surgido de uma deriva de improvisação de Robert de Niro que Scorsese, apesar de pressionado pelo tempo e pelos produtores, não quis parar.

Alguns filmes têm a vertigem da velocidade e da superação dos limites – Casino (1995), por exemplo, talvez sofra disso, está saturado com experiência-limite na montagem, na imagem, no som, Bonello quis saber se por isso houve um recomeçar do zero com Kundun (1997). “Foi isso.” E quis saber mais, se Scorsese sente medo do vazio. Foi a questão que o fez parar antes de responder. E a resposta tem que ver com o alívio. Como acontece em alguma música, explica, a velocidade “é libertadora, limpa, da sensação de calma”. “Tenho desejo disso, dessa tranquilidade.” Quando um plano acaba de ser filmado, Martin Scorsese precisa de serenar com a velocidade, entrando em contacto com tudo o que se passou ou com o que ainda existe de tudo aquilo que se passou. “Então, quando o plano acaba, eu seguro-me à câmara.”

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