A impiedosa destruição do património arquitectónico de Lisboa
A cidade entrou num vórtice de desmantelamento da sua integridade original, correndo o risco de perder para todo o sempre a sua aura de beleza e carisma e deixar cair por terra o seu estatuto de “cidade simbólica da humanidade”.
Alguém disse que Lisboa é muito mais bonita que Paris. Embora a cidade-luz tenha extraordinários monumentos e avenidas glamorosas, tudo isso não basta para que a sua beleza ultrapasse a de Lisboa, assente noutros pressupostos que, todavia, não são em geral detectados pela maior parte das pessoas.
A conjugação de uma orografia de uma complexidade rara, traduzida nas celebradas sete colinas, juntamente com um casario espontâneo que, ao longo de séculos, se foi empoleirando e esgueirando declives acima, assomando e dominando a presença do Tejo em águas furtadas e janelas de sacada, numa variabilidade arquitectónica de grande riqueza e marcado cunho cultural, congeminou um conjunto urbano de grande efeito estético e cénico, cujo descobrimento e reconhecimento a nível mundial veio finalmente celebrar.
Poupada aos bombardeamentos da 2.ª Guerra Mundial e aos desmandos dos ”Haussmann“ deste mundo, Lisboa manteve praticamente incólume a sua configuração antiga até aos dias de hoje.
Infelizmente, tal vantagem parece que não foi entendida pelos decisores políticos, técnicos ligados ao urbanismo e população em geral. Só assim se compreende o facto de a cidade ter entrado num vórtice de desmantelamento dessa sua integridade original, correndo o risco de perder para todo o sempre a sua aura de beleza e carisma e deixar cair por terra o seu estatuto de “cidade simbólica da humanidade” (Paulo Varela Gomes).
Resolvi escrever este artigo depois de recentemente ter ouvido algumas opiniões sobre a cidade de três personalidades que me habituei, de há muito, a admirar e respeitar: Daniel Oliveira, Clara Ferreira Alves e Miguel Sousa Tavares. Confesso que os seus juízos me desiludiram pelo facto de terem omitido qualquer referência à descaracterização galopante a que a cidade está actualmente sujeita e cuja evidência se revela com veemência aos olhos de qualquer pessoa cujos sentidos estejam a funcionar normalmente.
No programa da SIC-Notícias, O Eixo do Mal, de 24 de Abril, onde foi debatida a problemática dos centros históricos de Lisboa, não foi referida uma única palavra pelos participantes acerca do escandaloso processo de desfiguramento e falseamento em curso da integridade arquitectónica dessas zonas.
No Telejornal da noite da SIC, no dia 30 de Abril, ainda sobre a mesma temática, Miguel Sousa Tavares chegou mesmo a elogiar o processo em curso de reabilitação dos edifícios antigos. Admira-me que este autor e jornalista, que muito prezo, e que teve o imenso mérito de ter denunciado durante anos, em demanda quase solitária, a destruição criminosa do Algarve, não se tenha apercebido de que o que se está a passar em Lisboa na actualidade não é mais que uma versão equivalente do que se passou no Algarve nos anos 80 do século passado. Quer a nível das destruições, quer a nível das descaracterizações. No que respeita às reabilitações, elas quase não existem em Lisboa. Na verdade, o que existe são modernizações standard, feitas à revelia de qualquer preocupação na preservação da integridade construtiva, da autenticidade e do cunho histórico dos edifícios. Aliás, na maior parte das vezes, demole-se tudo à excepção da fachada, que por sua vez é alterada e "higienizada". No Algarve são os resorts, em Lisboa os pastiches – tudo farinha do mesmo saco!
Tudo leva a crer que tais personalidades não passeiam, por exemplo, em Alfama e assim não podem constatar o grau avassalador e vertiginoso de como aquele bairro está a ser desfigurado a cada dia que passa: portas e janelas em alumínio detestável em substituição das originárias em madeira, já quase inexistentes; fachadas betonizadas e pintadas com horrorosas tintas plásticas de cores pirosas e berrantes; “reabilitações” chapa 7 que não deixam o mais leve traço do carácter dos edifícios intervencionados; construções contemporâneas, em absoluta dissonância com o espírito do lugar. E isto passa-se não só aí mas em todos os outros bairros históricos de Lisboa.
Quem gosta e pode viajar já teve seguramente a oportunidade de visitar e deslumbrar-se com um dos ícones da arquitectura tradicional a nível mundial, Chefchaouen, no Riff marroquino. Imagino o que pensariam e sentiriam tais viajantes se chegassem a esse destino e deparassem com uma situação equivalente à de Alfama: as magníficas portas de madeira trabalhada substituídas por outras de alumínio e as escultóricas formas orgânicas do casario pintadas de cal em branco e azul-cobalto, cimentadas, alisadas em linhas direitas e rígidas e cobertas pela artificialidade das pastosas tintas industriais com cores da paleta Disney. Seguramente ululariam de indignação, de tristeza e de revolta.
Ainda não há muitos anos, no Alentejo e no Algarve existia um número considerável de pequenas Chefchaouen, que entretanto desapareceram num processo de extinção implacável.
Em Lisboa, Alfama com a sua medina era a nossa exótica Chefchaouen, onde apetecia efabular um “Oriente ao oriente do Oriente” (Fernando Pessoa), evocar tempos antanhos e perder-nos docemente no labirinto de becos, escadarias, arcos, pátios e castiços gentios. Algo impossível actualmente, onde o Airbnb, os turistas low cost, as ruas vazias de autóctones e a arquitectura abastardada, estilhaçam qualquer sonho ou devaneio, despertando-nos compulsivamente para a exigência liminar da facturação, da rentabilidade e da competitividade.
O Mono do Rato, o edifício contemporâneo projectado para a Praça das Flores, a singular moradia setecentista demolida na Lapa, o museu judaico que se perspectiva na principal praça de Alfama, a Casa de Almeida Garrett que foi ignobilmente demolida, são algumas contas de um rosário tétrico e infindável que estende os seus tentáculos por toda a cidade, nomeadamente nas avenidas novas e na frente ribeirinha (cada vez mais envidraçada), ameaçando os alicerces da “cidade simbólica da humanidade” .
Clara Ferreira Alves defendeu no dito programa que a construção em altura em Lisboa teria sido uma opção acertada no passado, pois isso teria facilitado as soluções para os complicados problemas da habitação. Ao defender tal cenário a comentadora ignorou o facto de que um dos factores mais expressivo e identitário do carácter da cidade de Lisboa é o contorno único do seu perfil que se recorta numa elegante silhueta contra o céu, mutável em função do ponto de observação, mas sempre delimitando um corpo urbano horizontalizado que se desenvolve em volumes de complexas sobreposições, descaindo em suave anfiteatro até às mansas águas do Tejo. Há uns anos um arquitecto paisagista, de que me não recordo o nome, destacou este valor essencial da cidade, defendendo publicamente a demolição, a bem do resgate da pureza do perfil de Lisboa, de todos os prédios que recentemente, devido à sua altura excessiva, estavam a desarmonizar e corromper tal linha de contorno. Esperemos que a Lisboa não aconteça o mesmo que a Jerusalém e a Istambul, também duas cidades paradigmáticas, cujas silhuetas foram destroçadas por arranha-céus desmedidos.
O Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago, pode constituir uma certeira metáfora para uma população que se especializou em olhar o ecrã, mas que perdeu a capacidade de olhar o mundo à volta, nomeadamente ver o que está bem e o que está mal no espaço e na arquitectura de Lisboa.