Um navegador solitário regressa esta quarta-feira a Cannes: Paulo Rocha

Em 1982, um cineasta português, Paulo Rocha, aportava a Cannes com o périplo de Lisboa ao Japão de um escritor português do século XIX, Wenceslau de Moraes. Foi a descoberta de A Ilha dos Amores, foram os anos de deslumbramento com uma ilha, o cinema português. Cannes avista de novo Paulo Rocha, navegador solitário do século XX.

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A Ilha dos Amores
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Na rodagem de A Ilha dos Amores
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Na rodagem de A Ilha dos Amores

Trinta e seis anos depois de ter estado em competição, na companhia de Werner Schroeter (O Dia dos Idiotas), Werner Herzog (Fitzcarraldo), Wenders e Antonioni (Hammett Identificação de Uma Mulher, respectivamente), Godard (Passion) ou Skolimowski (Moolinghting) — a Palma de Ouro, ex aequo, em 1982, iria para Missing, de Costa Gravas, e Yol, de Yilmaz Güney... –, A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha, regressa esta quarta-feira, dia 9, ao festival.

É o primeiro filme a ser exibido na secção Cannes Classics da 71.ª edição, que programa a redescoberta de “clássicos” em cópias restauradas ou a estreia de documentários recentes sobre filmes e figuras do cinema.

A versão digital a partir da cópia distribuída em 1982 do filme da vida e morte, e amores, do escritor português Wenceslau de Moraes (Lisboa, 1854-Tokushima, Japão,1929), ao qual Rocha (1935-2012) dedicou mais de uma década de vida, aventura que a deriva febril e não obstante serena da personagem parece absorver, incorporar e talvez contar, estará em companhia de 2001 Odisseia no Espaço (1968), de Kubrick, Ladri di Biciclette (1948) de Vittorio de Sica, Viagem a Tóquio (1953) de Ozu, Vertigo (1958), de Hitchcock, O Apartamento (1960), de Billy Wilder, A Religiosa (1965), de Rivette, ou Grease (1978), de Randal Kleiser (presença em Cannes de John Travolta), e ainda de documentários sobre Jane Fonda, Orson Welles ou Ingmar Bergman.

Estava a Cinemateca Portuguesa no processo de digitalização de A Ilha dos Amores – sempre segundo o princípio, explica Tiago Baptista, que dirige o Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, de “não aceitar a digitalização como forma de preservação, apenas como modo de difusão cultural”, por isso a sala da Barata Salgueiro, em Lisboa, não abdica da experiência da película, quando põe a circular a versão digital –, estava a Cinemateca atenta às possibilidades “de saída” desse trabalho, quando enviou a proposta aos programadores de Cannes de exibição desta versão de A Ilha dos Amores. 

Não é um restauro, é uma migração para outro suporte. E, tal como outras digitalizações feitas pela instituição, implicou “cruzar elementos de informação, a comparação técnica de todos os materiais fílmicos encontrados em arquivo, para que a conversão da cor digital obedecesse às cópias distribuídas na época, para conseguir produzir uma versão digital que respeite as informações do arquivo fotoquímico” — a Cinemateca alinha pelo “regresso aos princípios elementares do restauro depois da euforia generalizada com as técnicas digitais”, prometendo “melhor do que o original...”, “o que nunca foi visto antes...”, prometendo anular o tempo, o que, para a equipa da Barata Salgueiro, é uma adulteração, uma corrupção.

A proposta foi irresistível, então, conta Tiago Baptista, porque para Cannes seria acolher de novo o filme que ali foi descoberto, na competição de 1982. No dossier de imprensa que acompanha agora ao festival A Ilha dos Amores (e o actor Luís Miguel Cintra, intérprete de Wenceslau de Moraes) integra-se o balanço que os Cahiers du Cinéma fizeram daquela 35.ª edição – que, para fazermos ideia desse mundo, abriu com Intolerance, de Griffith, e encerrou com o ET de Spielberg.

“Enquanto houver ilhas”, era o título do texto de Charles Tesson sobre “um filme imenso”, “um lento exílio no interior de um único país: o cinema” que a revista considerou “um dos grandes momentos” do festival. Não se consegue deixar de ler esse texto sem avistar nessa “ilha” um país de cinema chamado Portugal, que por aqueles anos era assim olhado: como milagrosa resistência e consolo para os náufragos de uma paisagem que, escrevia-se, suportava “cada vez menos abordagens tão singulares”.

Isto aconteceu em 1982 nos Cahiers, um ano depois da capa dada a Francisca, de Oliveira, quatro anos antes da capa a Le Soulier de Satin, também de Oliveira, e do dossier, em Maio de 1986, que fez a recepção da A Ilha dos Amores em salas francesas. Esse numero incluía longa entrevista com “o navegador solitário”, Paulo Rocha, querendo ver na viagem sem regresso, de Portugal ao Japão, de um escritor português do século XIX o desejo mimético de um cineasta do século XX.

Um daqueles, “cada vez menos numerosos, que têm a necessidade imperiosa de viver as histórias que querem contar antes de as ousar filmar”, e por isso Rocha tornou-se, nesse “toda uma vida por um filme” que foi A Ilha dos Amores, “o duplo da sua personagem, o fantasma incarnado da sua ficção”.

A Cinemateca, reforça o director do ANIM, “sente especial responsabilidade” para com a obra de Rocha (1935-2012), “uma vez que ainda em vida ele legou os direitos dos seus filmes” à instituição. Por isso, a digitalização tem sido acompanhada, num acordo com a distribuidora Midas Filmes, de exibição comercial e posterior edição em DVD. Aconteceu em 2015 com Mudar de Vida (1967) e Verdes Anos (1963), em 2016 com Se Eu Fosse Ladrão Roubava (2013) e Rio do Ouro (1999) — edição só em DVD de Máscara de Aço contra Abismo Azul (1989) – e acontecerá em Julho de 2018: DVD de A Ilha dos Amores e do seu “gémeo”, A Ilha de Moraes, documentário, com testemunhos verbais, fotos e escritos e com o périplo do próprio cineasta pelas cidades de Wenceslau: Lisboa, Macau, Kobe e Tokushima, onde morreu.

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