A “brincadeira” dos índios krahô com João Salaviza e Renée Nader Messora
Nove anos depois da Palma de Ouro a Arena, o cineasta português regressa ao festival de Cannes, com nova vida e novo cinema, após Renée Nader Messora o ter apresentado aos índios krahô. No dia 16, na secção Un Certain Regard, mostram Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos.
João Salaviza, 34 anos, e Renée Nader Messora, 38, reorganizaram “as coisas que foram vendo e vivendo” quando estiveram em família com um povo indígena do Brasil, os krahô, em Pedra Branca, aldeia do estado de Tocantins. Foi como uma longa repérage. Uma nova vida que meteu o cinema pelo meio. Dessa “reorganização” do que foram vendo e vivendo, diz Renée, nasceu Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, o filme que o casal apresenta no dia 16 na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes.
Essa nova vida que o português e a brasileira viveram a mil quilómetros de Brasília e que deu um filme começou por ser uma fuga. Ele, o realizador de Montanha, ela, a sua assistente nesse filme, estavam ainda na pós-produção quando Renée o “raptou” para o apresentar aos krahô. Povo de que João ouvia falar nos relatos de Renée e com quem ela, desde 2009, desenvolvia projectos audiovisuais, oficinas de fotografia e montagem. A meio, então, desse filme sobre a adolescência, os desaires e o peso da máquina do cinema enchiam Salaviza de melancolia e do sentimento de esgotamento. Tinha de se livrar da “parafernália” que até aí tinha sido o seu mundo querido e conhecido.
“Quando acabámos a rodagem, começou a expectativa. Eu queria continuar a filmar e a viver, os produtores perguntavam-me para onde é que eu ia depois de um caminho que parecia programado: as curtas [Arena, 2009, Rafa, 2012, Cerro Negro, 2012] e uma longa [Montanha] que vinha no seguimento delas.” João cortou. Houve a fuga.
Viveram e viram coisas em Pedra Branca, um casal e uma câmara. Com a repérage existencial – para ele foi de quatro anos, para ela, que se juntara aos krahô muito antes, foram dez – redescobriram “o prazer de viver e de filmar”, diz Salaviza.
O facto de Chuva è Cantoria na Aldeia dos Mortos, rodado ao longo de nove meses, em película 16mm e sem equipa, seguir o percurso de um adolescente, Ihjãc – após encontro com o espírito do falecido pai, vê-se obrigado a realizar a sua festa de fim de luto –, não deixa de ser surpreendente. Até paradoxal. Vem de alguém que declarara o fim da adolescência no seu cinema.
Depois, tendo sido anunciado como “documentário”, é descrito pelos dois realizadores (Renée é, além disso, a directora de fotografia) como reorganização de materiais da vida, “reencenações” – o quotidiano dos krahô é feito de rituais, explicam. “Na forma como nos relacionámos com eles, e acreditando não ter entrado numa atitude predatória, há uma reencenação de situações que talvez não reencenassem [se não fosse o filme], mas os rituais estão presentes no quotidiano.”
“Vimos muitos filmes...”, conta Salaviza, “documentários académicos, filmes brasileiros e americanos, como A Cidade Perdida de Z, do James Gray. Chegámos à conclusão de que há dois modos de representação dos povos indígenas: por um lado, fantasiosas, exotizantes, de que o filme de Gray é paradigmático: os indígenas, as poucas vezes que falam, é para dizerem frases proféticas e filosóficas sobre a natureza, como se não tivessem direito à sua individualidade, como se não tivessem fome, não jogassem à bola, não se chateassem. Outra forma é representá-los sempre em contraste com a cultura ocidental, como se todas as acções e palavras fossem gestos de resistência – esquecendo que esse modo de organização social é anterior à chegada dos portugueses ao Brasil. É a forma de eles viverem, não é uma resistência aos brancos.” Isso era o que eles não queriam. Enquanto esperamos pelo que quiseram, ficamos com a palavra que em krahô, segundo Renée, está mais perto de designar cinema: “Brincadeira.”