O Espírito Santo é um atrevido
A comunhão real é sempre mais importante do que as divergências teológicas.
1. Entramos em Maio e no VI Domingo da Páscoa. O Espírito Santo resolveu não esperar pela festa do Pentecostes e meteu S. Pedro em sarilhos teológicos e pastorais [1]. Contam os Actos dos Apóstolos (Actos) que estava ele para começar a rezar, mas com muita fome. Veio do Céu uma toalha cheia de manjares, mas todos proibidos a um bom judeu. Foi o próprio Espírito Santo quem lhe disse para não ligar a essas proibições e comer à vontade. Insistiu ainda que entrasse na casa de um gentio, um centurião romano, que o recebeu desvanecido. Pedro anunciou aí um princípio teológico de alcance universal: reconheço que Deus não faz acepção de pessoas, pois qualquer uma, de qualquer nação que O tema e pratique a justiça, Lhe é agradável. Não estava a criar um novo privilégio, pois Jesus Cristo, que é o Senhor de todos, até começou pelos filhos de Israel o anúncio da boa nova da paz.
O Espírito Santo mostrou que não estava para conversas nem muitas cerimónias. Desceu sobre todos. Os companheiros de Pedro ficaram maravilhados ao verem que os gentios tinham a mesma sorte que eles. Pedro rendeu-se à evidência: como negar o baptismo aos que já receberam o Espírito Santo? Nasceu ali uma nova comunidade.
Esta impertinência não agradou aos circuncisos mais fanáticos. Ao subir a Jerusalém acusaram Pedro: o que foste fazer?! Entraste em casa de incircuncisos e comeste com eles?
Pedro teve de contar tudo, de fio a pavio. Tinha alterado a distinção entre sagrado e profano: ao que Deus purificou não chames profano. Acrescentou: eu não tive culpa nenhuma. Estava a falar e o Espírito Santo caiu sobre eles como sobre nós ao princípio. Foi, então, que me lembrei das palavras de João: sereis baptizados no Espírito Santo. Quem sou eu para me opor a Deus?
A mudança de mentalidade não se resolve com uma explicação. Os que foram dispersos por causa do atentado contra Estêvão não ficaram parados. Anunciavam Jesus Cristo, mas dirigindo-se, apenas, aos judeus da diáspora. Alguns cipriotas e cirineus chegaram a Antioquia, abandonaram essas esquisitices e dirigiram-se a todos. Barnabé, constituído espião pela igreja de Jerusalém, virou-se para essa nova realidade. Partiu para Tarso à procura de Paulo e levou-o para Antioquia. Passaram um ano inteiro nesta nova igreja que cresceu como leite ao lume. O autor dos Actos nota deliciado: foi em Antioquia que, pela primeira vez, os discípulos receberam o nome de cristãos.
A Bíblia de Jerusalém comenta: ao criarem a alcunha de cristãos, os pagãos de Antioquia fizeram do título “Cristo” (ungido) um nome próprio. E assim ficou até hoje.
2. Os discípulos de Cristo continuavam com profundas divergências: uns sustentavam que a abertura aos gentios era respeitável, mas se adoptassem os costumes judaicos; outros diziam que o Espírito Santo não ligava a essas distinções. Apesar das divergências, os cristãos de Antioquia, quando souberam da fome que se passava na Judeia, decidiram reunir auxílios, cada um segundo as suas posses, e mandaram Barnabé e Paulo entregar o fruto recolhido aos anciãos. A comunhão real é sempre mais importante do que as divergências teológicas.
Dizem os Actos que Herodes começou a maltratar alguns membros da Igreja. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João. Vendo que isto agradava aos judeus, meteu Pedro na cadeia bem policiada para fazer, depois da Páscoa, um brilharete com este prisioneiro. Na noite em que Herodes se preparava para essa operação de propaganda, um Anjo dirige as operações da fuga. Venceram todos os obstáculos e até o portão de ferro que dava para a cidade se abriu. Quando Pedro se dá conta que não esteve a sonhar, dirigiu-se para a casa de Maria, mãe de João, onde estavam muitos a rezar. Bateu à porta, a criada foi escutar e correu para dentro a anunciar que Pedro estava em frente do portal. Disseram-lhe: estás maluca. Ela, porém, sustentava que era ele mesmo. Os outros diziam: talvez um Anjo. Herodes não era para brincadeiras. Não encontrando Pedro que fugira para Cesareia, mandou matar os soldados.
3. O Espírito Santo é muito atrevido, mas não é louco, não se substitui a ninguém, não tem uma varinha de condão para eliminar conflitos, não quer fazer nada sozinho, mas também não se acomoda ao que sempre assim foi. Era viável que a memória de Jesus tivesse suscitado mais uma variante do judaísmo – era uma religião com muitas tendências – e ficasse por ali, em Jerusalém, tranquila, sem criar problemas nem rupturas.
O autor dos chamados Actos dos Apóstolos já tinha escrito uma obra sobre Jesus, que rompera com o seu austero mestre João Baptista por causa das convicções que o incontrolável Espírito Santo lhe tinha metido na cabeça e no coração [2].
É esse mesmo Espírito que provoca uma Igreja de saída em todas as direcções. Começada com Pedro, acelerou-se com Paulo e Barnabé. É, de novo, o Espírito Santo que não se contenta com a bem evangelizada e organizada Igreja de Antioquia que tinha profetas e doutores em abundância: "separai-me Bernabé e Saulo para a obra que os destinei. Então, depois de terem jejuado e orado, impuseram-lhes as mãos e despediram-no." [3]
E lá foram eles, por todo o lado, a abrir o caminho do Evangelho tanto a judeus como a gentios – tendo mais sorte com estes do que com os primeiros – e organizando as comunidades para que a missão continuasse, ainda que no meio de muitas contrariedades.
Regressados a Antioquia, narraram o que tinha acontecido sublinhando como se havia aberto a porta da Fé aos gentios. Ficaram lá bastante tempo, mas não muito descansados.
Vieram alguns da Judeia com a velha história: "se não vos circuncidardes, segundo a norma de Moisés, não vos podereis salvar."
O texto acentua que isto provocou uma grande agitação. Paulo e Barnabé não se deram por vencidos. Entraram no debate. Sem solução à vista, resolveram subir a Jerusalém para tratar deste litígio com os apóstolos e os anciãos. No caminho continuaram a falar da conversão dos gentios e a dar alegria aos cristãos da Fenícia e Samaria. Ao serem acolhidos em Jerusalém pelos apóstolos e anciãos, os fariseus que abraçaram a fé cristã, não desarmaram: os gentios têm de adoptar os costumes judaicos e a lei de Moisés. Reuniram-se em concílio, a discussão não abrandou e foi Pedro que inclinou a balança para o lado de Barnabé e Paulo, a ponto de Tiago, chefe da Igreja local, também apoiar a ideia de que não deviam molestar os gentios que se convertessem a Deus. Foi redigido um documento que dava livre-trânsito à contestada missão de Paulo e Bernabé.
Lendo a história agitada dos capítulos 10-15 dos Actos, que temos seguido, somos levados a pensar que o Papa Francisco se deixou manipular pelo Espírito Santo. Esse atrevimento de recusar a consagrada receita do sempre assim foi libertou-o para procurar inserir, nas mudanças do mundo, a inquietante novidade do Evangelho.
[1] Act. 10 – 15.
[2] Lc 3 - 4
[3] Act. 13, 1-3