Trump abre uma janela e fecha uma porta
Rasgar o acordo com o Irão sem a garantia de novas negociações para um segundo, é alimentar a corrida às armas nucleares no Médio Oriente.
1. Na Península da Coreia fechou-se um capítulo e abriu-se outro, que ainda não tem título, mas que se espera um pouco melhor do que o anterior. Falta a cimeira crucial entre Kim e Trump, agendada para breve. Entretanto, cada um dos actores principais afina a sua estratégia. Abriu-se uma janela. Mas há outra razão pela qual o mundo não pode descansar. Adensa-se a tensão em torno do acordo nuclear com o Irão, negociado em 2015 por Barack Obama no formato “cinco mais um” (os membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha).
Trump não tranquilizou Macron e Merkel, quando o visitaram há meia dúzia de dias. A convicção europeia é que o Presidente não resistirá à tentação de rasgá-lo. Mas, em Paris, Berlim e Londres ainda se tenta encontrar uma forma de dar algumas garantias adicionais ao Presidente. Em cima da mesa parece estar uma proposta de aplicação de sanções caso o regime insista na construção de mísseis de longo alcance. Chegará para levar Trump a mudar de posição? A esperança não é grande.
Mas, se há uma coisa em comum entre a Coreia do Norte e o Irão, é a importância que os dois regimes atribuem a uma negociação directa com os EUA, dando-lhes o estatuto internacional a que aspiram e a única garantia de segurança em que acreditam.
Os caminhos foram opostos. A Coreia do Norte apenas abriu a hipótese de negociações depois de ter construído a bomba nuclear e os mísseis de longo alcance para projectá-la até território americano. O Irão seguiu o caminho inverso. Há, além disso, uma outra diferença fundamental. A Coreia do Norte é, ela própria, uma grande prisão, isolada do mundo, cuja chave está no bolso de Kim. O regime teocrático mantém milhares de opositores na prisão, mas reina sobre uma sociedade mais desenvolvida e mais culta, que representa uma civilização milenar.
2. No Irão, como na Coreia do Norte, as sanções económicas funcionaram. O regime sabe que tem de manter uma classe média economicamente satisfeita. E não esquece o que aconteceu em 2009, quando milhares e milhares de iranianos vieram para a rua contestar o resultado das eleições presidenciais, que o regime tinha falseado. Acabou por ser esmagada. Mas foi um aviso.
Obama adiou quanto pôde apoiar os manifestantes. Acabou por fazê-lo, sem comprometer o que tinha prometido no seu discurso de posse: estender a mão aos inimigos. A sua estratégia assentava nos sectores mais moderados do regime, que recuperaram terreno e facilitaram as negociações na sua fase secreta, destinada a construir uma base de confiança indispensável para poderem apresentar-se à luz do dia.
A estratégia de George W. Bush era a oposta: quanto mais radical fosse o regime, melhor. Estávamos ainda na fase de “mudança de regime” no Médio Oriente, mesmo que pela força, para “democratizar” a região. Aparentemente, Trump regressa à mesma estratégia, sem a parte da democracia.
A possibilidade de incendiar o Médio Oriente existe. António Guterres, numa entrevista à BBC, referiu abertamente o risco de guerra, mesmo reconhecendo as interferências de Teerão na Síria, no Iémen, no Iraque, denunciadas por Trump. Refere o Guardian que o colapso do acordo “seria visto pelos iranianos como uma traição”. Em 2013, continua o jornalista Saeed Kamali Dehghan, que foi correspondente em Teerão, os iranianos “acabaram com a era de Ahmadinejad, o negacionista do Holocauto, colocando a sua confiança no candidato reformista Hassan Rohani, que cumpriu a promessa de resolver a questão nuclear.” No mesmo jornal, Patrick Wintour, editor diplomático, escreve que “a possibilidade de um conflito militar com o Irão ainda não é muito alta”. Mas lembra que o colapso do acordo teria como consequência a “destruição dos moderados e reformistas por muitos e bons anos.”
3. A entrada em cena do primeiro-ministro israelita, na quarta-feira passada, foi de mau augúrio, mesmo que não tenha tido o impacto que provavelmente pretendia. Netanyahu apresentou um power-point com as provas de que o Irão está a construir a bomba, numa conferência de imprensa depois de Mike Pompeo, o novo secretário de Estado americano, ter deixado Israel. O primeiro-ministro israelita não tem qualquer estratégia, a não ser perpetuar-se no poder e a sua credibilidade está pelas ruas da amargura. “Há 20 anos que Israel anda a dizer a mesma coisa sobre o Irão”, comenta uma fonte diplomática europeia. À excepção da Casa Branca.
Trump decidiu demonstrar o seu apoio a Israel, anunciando a mudança da embaixada de Telavive para Jerusalém e já deu a entender que poderia ser ele a inaugurá-la. É deitar lume para a fogueira. A convicção generalizada é que o Irão tem cumprido o acordo, a troco do progressivo levantamento das sanções que estavam a destruir a economia. O comércio com a Europa disparou, incluindo a exportação de energia. As empresas europeias têm investido fortemente no país. Os europeus tencionam usar esse argumento para manter Teerão no acordo, mesmo com a saída americana. Mas há um risco. Se o Presidente americano aplicar de novo as sanções, isso impedirá as empresas europeias com negócios no Irão de exportar para os EUA.
4. Rasgar o acordo sem a garantia de novas negociações para um segundo, é alimentar a corrida às armas nucleares na região. A Arábia Saudita, que Trump escolheu como o seu parceiro, iria rapidamente ao “mercado”. A Turquia poderia cair na tentação. O cenário é bastante assustador. A corrida às armas nucleares está a ficar descontrolada, escreve a Economist. A dispersão é, potencialmente, mais perigosa do que o “equilíbrio do terror”, garantido durante a Guerra Fria pela paridade entre as duas superpotências (MAD, Destruição Mútua Assegurada).
A redução paralela dos arsenais nucleares entre Washington e Moscovo começou a ser negociada alguns anos depois da crise dos mísseis de Cuba (1962), acelerando com o fim da Guerra Fria. Hoje, esses acordos estão em risco. Putin ignora a lei internacional. Trump promete modernizar o arsenal nuclear americano com a tecnologia mais avançada. “Os velhos acordos para limitar as armas nucleares estão enfraquecidos”, escreve a Economist. Renegociá-los é mais difícil. Sair do acordo com o Irão, acrescenta a revista, na véspera de uma cimeira entre Trump e Kim, seria o pior dos sinais.
5. Na semana passada, uma delegação americana do mais alto nível foi a Pequim negociar com o Governo chinês uma forma de tentar evitar uma “guerra” comercial com repercussões económicas mundiais. Os EUA querem reequilibrar a sua balança com a China. Xi Jinping reagiu com prudência às ameaças de Trump, mas não pode ceder em todas as frentes: na Coreia e no comércio. As negociações foram “francas” mas não houve cedências. Os EUA prometem tarifas de 150 mil milhões de dólares. A China apresenta uma lista que vale 50 mil milhões. O braço de ferro vai prolongar-se.
Entretanto, a Casa Branca prolongou por mais um mês a suspensão das tarifas sobre o aço e o alumínio da União Europeia e dos seus dois parceiros da NAFTA, México e Canadá. Mantém a pressão sobre a Europa. Os sinais de algum abrandamento da economia europeia devem-se à incerteza sobre a conduta dos EUA, temendo-se uma vaga de proteccionismo com consequências muito negativas.
Do outro lado do Atlântico, as críticas ainda são mais contundentes. Alguns economistas alertam para o facto de Trump estar pôr de pé as mesmas políticas que se seguiram ao crash da Bolsa de 1929 e que levaram à Grande Depressão, que só seria contida a partir de 1933, com a eleição de Franklin Roosevelt. São argumentos válidos, mas que esbarram com as boas notícias da economia. O desemprego caiu nos EUA para 3,9%, ou seja, há pleno emprego. Quem é que se vai preocupar com o dia de amanhã?