Maio de 68: a revolta ameaçada
O ideal primeiro de Maio de 68 era a liberdade, em paralelo com uma grande desconfiança em relação ao poder: daí o lema ”todo o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”
Paul Ricoeur, então reitor da Universidade de Nanterre, onde a revolta começou, escreveu na revista Esprit, referindo-se aos acontecimentos de 68: “O Ocidente entrou numa revolução cultural (…) porque questiona a visão do mundo, a conceção de vida subjacente à economia, à política e ao conjunto das relações humanas. Uma revolução que ataca o capitalismo não apenas porque ele fracassa na realização da justiça social, mas também porque consegue seduzir os homens (…). Uma revolução que ataca o niilismo de uma sociedade que, tal como um tecido canceroso, não tem outro objetivo que não seja o crescimento.” Dificilmente se poderia explicar melhor o que foi Maio de 68 em França e os anos 60 de muitos Maios, das manifestações pelos direitos cívicos e contra a guerra do Vietname, nos Estados Unidos, à Primavera de Praga.
Parte significativa da juventude nascida após a II Guerra Mundial punha em causa, antes de tudo, uma sociedade autoritária e conservadora, em contradição com o bem-estar económico que a paz trouxera e os valores da resistência ao nazismo. Os jovens tinham uma consciência aguda do autoritarismo: quem da nossa geração não se lembra da violência exercida pelos professores nas escolas, quantos não se queixavam da violência parental. O autoritarismo marcava os Estados democráticos, que se recompunham com dificuldade das feridas da guerra (e do fim do colonialismo) e de uma forma muito mais feroz as ditaduras da Península ibérica, do Leste europeu ou da América Latina. Os partidos comunistas pró-soviéticos eram vistos como partidos autoritários, opostos à vontade emancipadora dos povos. Lembro-me do entusiasmo com que recebemos em Bruxelas, onde então vivia, estudantes que fugiam à repressão dos tanques da URSS em Praga. Não é por acaso que Georges Marchais, secretário geral do PCF, escreveu um artigo no L’Humanité denunciando os “falsos revolucionários” e o “anarquista alemão Cohn-Bendit”.
O ideal primeiro de Maio de 68 era a liberdade, em paralelo com uma grande desconfiança em relação ao poder: daí o lema ”todo o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”. Não se tratava tanto de querer tomar o poder, era uma revolta e não uma revolução, mas de querer mudar a sociedade. Em causa estava um horizonte utópico onde o consumo não fosse o objetivo maior, onde as desigualdades fossem combatidas, onde todos fossem iguais, independentemente da sua raça ou religião. Em França, numa das maiores manifestações de Maio de 68, gritava-se “somos todos judeus alemães”, numa expressão das convicções antirracistas e antinacionalistas.
A revolta contra o establishment, a crítica aos partidos, a afirmação da autonomia do indivíduo, era acompanhada, como hoje, por uma crítica à democracia representativa, numa nostalgia da utopia grega da democracia permanente, não adormecida entre dois períodos eleitorais. A alternativa aparecia no ideal da democracia participativa e na autogestão das universidades e empresas – como aparece hoje na democracia direta com recurso à internet.
Então como hoje existe a convicção de que as eleições são uma armadilha, um “piége à con!”,porque têm pouca influência nas alternativas políticas, o que cria um enorme dilema, pois sem eleições não há democracia e as liberdades acabam por perecer. Numa democracia onde o voto pouco conta, os cidadãos afastam-se das instituições republicanas e o iliberalismo tende a triunfar. A pós-democracia, como escreveu Cohn-Bendit, é uma ilusão perigosa que termina no totalitarismo.
Passado 50 anos vivemos um período de intensa contestação da herança dos anos 60. As correntes populistas contestam a hegemonia desses ideais, a que chamam o politicamente correto, que alguns veem como a expressão de um liberalismo pouco democrático. É verdade que durante a crise da austeridade surgiram também correntes de indignados progressistas que, do Occupy Wall Street, aos indignados espanhóis, reivindicam uma sociedade menos obcecada com as performances económicas, que se reveem no slogan de 68 ”ninguém se apaixona por uma taxa de crescimento“.
A luta pela igualdade de género não era ainda uma reivindicação forte e o machismo era ainda dominante, mesmo na esquerda, o que não impedia a contestação da sociedade patriarcal e do seu puritanismo autoritário. Mesmo assim, dessa experiência libertadora brotaram os movimentos feministas, os de defesa dos direitos LGBTQ e as grandes conquistas da igualdade.
Talvez os verdadeiros herdeiros da revolução cultural dos anos 60 possam hoje ser encontrados nos grandes movimentos pela igualdade – desde logo de género, do movimento #Metoo à grande greve das mulheres em Espanha. Já não se trata apenas, ou essencialmente, de reivindicar a liberdade sexual, mas sim de exigir o fim da violência sexual e de uma justiça que a aligeira, de denunciar o sexismo de lideres populistas como Donald Trump. Mas os movimentos de defesa da igualdade integram também a luta contra a descriminação racial, contra as políticas anti-imigrantes e refugiados – um slogan atual ecoa Maio de 68: “Somos todos refugiados”.
Numa altura em que a Europa procura um novo horizonte utópico exequível, que dê sentido à sua reconstrução política, a utopia da igualdade aparece como a primeira das prioridades. Razão que explica certamente que seja a primeira conferência de Serralves, do ciclo dedicado às Utopias Europeias,se intitule: Maio de 68, 50 anos depois — a utopia da igualdade e da participação.