Autofagia futebolística
A atmosfera em redor do nosso futebol está a atingir perigosos níveis de desregulação, inquinamento e poluição.
Há tempos foi conhecido o anuário da época desportiva de futebol 2016/17, em boa hora surgido de uma parceria Liga de Futebol/EY, Ernst & Young. Nele se refere que esta actividade contribuiu com 456 milhões de euros para o PIB, por via de infra-estruturas, emprego e impostos directos. Seria largamente superior se lhe adicionássemos os impactos indirectos, em sectores como o turismo e a restauração, os transportes, a comunicação e as apostas desportivas. Em qualquer caso, é apreciável o seu quinhão para a fnbpm (“felicidade nacional bruta a preços de mercado”) e o facto de ser uma actividade em que exportamos, com qualidade, vitórias, jogadores e técnicos.
Benfica, FC Porto e Sporting concentraram 76% da globalidade das receitas totais e 79% das despesas globais. Esta assimetria tem-se acentuado em todos os vectores. Aqui apenas destacaria a enorme diferença entre os seus direitos televisivos, que são cerca de 15 vezes maiores dos que são detidos pelos clubes a meio da tabela, conforme nos indicou um também recente relatório da UEFA (em Inglaterra o ratio é de 1,3, em Itália de 3,3 e o mais perto de nós é a Espanha com 4,1!).
Os maiores clubes continuam a ter elevadas dívidas e avultado passivo ou a antecipar proveitos futuros (algumas vezes, bem para além do mandato eleitoral). Alguma opacidade das contas é, não raro, “estratégica”. Houvesse rating e, por certo, ver-se-iam “gregos” na escala “junk” das letrinhas que, implacavelmente, as agências de notação lhes assinalariam.
Em suma, trata-se de uma realidade sobre a qual se deve reflectir profundamente, num tempo em que o poder nos clubes ainda se alimenta de quimeras, emoção e do “chutar para a frente” as dificuldades e as obrigações (literalmente no caso do SCP).
Por outro lado, a atmosfera em redor do nosso futebol está a atingir perigosos níveis de desregulação, inquinamento e poluição.
É lastimável este tempo de necrose desportiva e de patologia destrutiva. E se, a nível de selecções, somos campeões europeus, no plano do ranking das equipas estamos no plano descendente e a cavar o fosso para as principais ligas (ainda que aqui haja outras razões poderosas e financeiras exógenas).
Vemos, em progressão logarítmica, o efeito nocivo de programas e comentários em certos canais televisivos de notícias. É até confrangedor ver pessoas respeitáveis no meio de touradas de sangue onde só falta o bicho. Ali, com mais ou menos desrespeito ou parlapatice, o que importa é excitar a discussão pela discussão, dar argumentos de ódio para ouvintes mais propensos à acefalia, repetir imagens de “enorme importância” vezes sem conta até se ficar nauseado. Os oráculos que se lêem debaixo de ecrãs, divididos aparvalhadamente em três ou quatro partes, são um pré-incitamento à violência. Propaga-se incontroladamente o mau exemplo, a acendalha lançada para cima de fogo tão artificial, quanto teatral. Pedagogia do bom exemplo é coisa rara, com direito, quando muito, a rodapés ou fugidios momentos.
Entretanto, como no Titanic, canta-se (insulta-se) e baila-se (finta-se) ao som da Ramona, não se dando conta que o desastre de uns ou de outros é o desastre de todos.
Os clubes, no que ao futebol profissional diz respeito, metamorfosearam-se em Sociedades Anónimas Desportivas (SAD), mas estão agora a regredir em aspectos fundamentais de ética desportiva, comunicacional e social. Não são capazes de enxergar que o seu muito competitivo “core business” (vencer) não é incompatível, bem pelo contrário, com a cooperação em aspectos comuns e basilares da sua actividade ou, como agora sói dizer-se, da sua indústria.
Todos os dias, de uma maneira ou de outra, com uns mais do que outros, com réplicas e tréplicas em versão Facebook ou similar, dirigentes, funcionários directores de comunicação ou de outro qualquer ofício insinuam, blasfemam e agridem-se sem a mínima urbanidade e decoro. Alguém imagina noutra qualquer actividade isto acontecer? O que seria, por exemplo, na banca, nos seguros, na distribuição, se todos os dias acontecessem coisas semelhantes?
É bom ter presente um ponto que, só por si, deveria emudecer a fanfarronice e erradicar a irresponsabilidade de quem acha que as SAD são um qualquer “brinquedo”: é que as SAD estão cotadas em bolsa e sujeitas à supervisão da CMVM.
Pois aqui o que excita é o alimento para claques sôfregas, os comentários de tudo menos dos jogos em si, as invectivas de hordas de agitadores de toda a sorte e o carrossel de denúncias ditas anónimas (!), tudo com o estranho silêncio das autoridades públicas, apesar do inglório, ainda que sério, esforço da Federação de Futebol.
Está-se a brincar com o fogo, sabendo-se que uma parte cada vez mais significativa das receitas dos chamados grandes advêm de patrocínios comerciais e de direitos televisivos que, obviamente, pagam um determinado preço contratual em função da reputação, do prestígio e do retorno dos recursos investidos. Fala-se agora de “marcas”, mas não se cuida da sua sustentabilidade.