Um lobijovem brasileiro na Disneylândia

As Boas Maneiras é o melhor musical-Disney-lésbico-de-terror que jamais se fez – e tem vindo a gerar sensação por onde passa, chegando esta semana a Portugal. Juliana Rojas e Marco Dutra, a dupla de São Paulo responsável pelo feito, explica o que é que tudo isto tem a ver com Brecht.

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Para a paulista Juliana Rojas (n. 1981) e o paulistano Marco Dutra (n. 1980), tudo mudou com As Boas Maneiras: o seu híbrido inclassificável saíu da competição de Locarno em 2017 com o Prémio Especial do Júri, e foi uma das mais notáveis revelações do cinema que se faz hoje no Brasil. Mas nada de confusões: o que vamos vendo de Kleber Mendonça Filho (Aquarius), Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta) ou Karim Aïnouz (Praia do Futuro) não faria esperar isto que chega hoje às salas portuguesas e na próxima semana ao DVD e ao VOD, depois de uma ante-estreia especial no IndieLisboa. As Boas Maneiras é um conto de fadas à Walt Disney, com canções e genéricos saídos da Bela Adormecida, filmado como um mistério gótico de Jacques Tourneur numa São Paulo moderna estilizada, sobre a relação que liga Clara, governanta negra sem dinheiro (a portuguesa Isabel Zuáa), e Ana, mãe solteira branca renegada pela família (Marjorie Estácio), ao longo dos meses de uma gravidez licantropa com o seu quê de Semente do Diabo. E ainda só estamos na primeira metade deste filme feito por uma dupla e que explora as contradições e as dicotomias do Brasil moderno: branco/negro, rico/pobre, centro/periferia, bem/mal…

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As Boas Maneiras é um conto de fadas à Walt Disney, com canções e genéricos saídos da Bela Adormecida, filmado como um mistério gótico de Jacques Tourneur numa São Paulo moderna estilizada

Trabalhando desde o início da década em conjunto e explorando com especial prazer o cinema de género, Juliana e Marco formam uma parceria criativa singular que os vê participarem nos projectos a solo um do outro – ela montou a longa dele Quando Eu Era Vivo, ele co-escreveu a banda-sonora da longa dela Sinfonia da Necrópole – pelo meio dos seus trabalhos de argumentista ou montador com outros realizadores. Nos salões retro de um pequeno hotel de família em Locarno, enquanto cai um temporal de verão, um Marco meio constipado explica ao Ípsilon que ele e Juliana se conhecem “desde o primeiro ano de faculdade, toda a nossa vida adulta”. No plateau, “não dividimos: gostamos de fazer tudo, de estar juntos o tempo todo. E como fizemos muitas curtas, e filmes um sem o outro, fomos ganhando jogo de cintura. Alguém nos disse que parece que somos duas metades de uma mesma pessoa – mas ao fim de vinte anos já entendemos muito bem como funcionar juntos.” As Boas Maneiras é a segunda longa-metragem assinada a meias após Trabalhar Cansa (2011, estreada em Cannes na paralela Un certain regard); quando o Ípsilon falou com a dupla, ainda o prémio de Locarno estava por vir, mas Juliana e Marco mostravam-se agradados com a calorosa recepção ao filme.

Como é que surgiu esta ideia de pegar numa história clássica do cinema de terror, e de a tornar numa história de amor maternal?
Juliana Rojas – A inspiração veio de um sonho que o Marco teve – a imagem de duas mulheres que vivem isoladas e que criam sozinhas uma criança-monstro. Desde o início, era também uma história de afecto feminino, de duas mulheres contra o mundo, também dos diferentes tipos de maternidade... E as fábulas estão sempre ligadas a questões profundamente humanas. São conflitos que geralmente têm a ver com a metamorfose do corpo, equilibrar a nossa racionalidade e as amarras sociais com o instinto que temos... Além da vontade de falar dessas questões, inspirámo-nos muito também no Círculo de Giz Caucasiano de Bertolt Brecht, que ajudámos a encenar há alguns anos, porque ele pega na lenda do Rei Salomão e a subverte. Na peça, a conclusão é que a verdadeira mãe é aquela que cria a criança. Queríamos trabalhar essa ideia de uma relação familiar ser às vezes pelos afectos, não necessariamente biológica.

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Trabalhando em conjunto e explorando o cinema de género, Marco Dutra e Juliana Rojas formam uma parceria criativa singular Matheus Rocha

Marco Dutra – Na peça do Brecht, o amor não é uma coisa abstracta que existe, vem do trabalho, da própria vida. O filme sempre teve este título, As Boas Maneiras, e a ideia de que teria um lado sobre a gestação e outro sobre o bebé. Mas a estrutura já estava presente desde o o início, já tínhamos a sensação de que o parto seria o “meio” do filme. E fomos vendo que existiam muitos outros contrastes – preto/branco, centro/periferia, mãe/filho - e como isso se aplica ao lobisomem: dois extremos na mesma pessoa. Essa ideia foi ficando muito forte, e agora, pensando nesse processo todo, parece interessante que seja um filme como este a lidar com todas essas ideias de contraste e diferença.

É um filme que fala muito do Brasil hoje, e da maneira como o Brasil hoje se vê, para lá da divisão de raça e de classe.
Juliana – Somos de São Paulo, a maior cidade da América Latina, onde é muito evidente uma divisão social e de classe. Que tem também a ver com a geografia dentro da própria cidade, que é muito clara para quem visita: tem áreas completamente desenvolvidas e ricas, tem áreas extremamente pobres, e isso representa muito os abismos de classe no Brasil, que têm a ver com a questão racial. No Brasil existe um mito: não há racismo por ser um povo miscigenado. Mas na verdade é um país muito racista e o racismo é muito estrutural – o modo como o país lidou com o fim da escravidão… não deu nenhum suporte, não fez nenhum tipo de compensação histórica, que é criminoso. Ao longo da nossa história, a maioria da população negra é muito pobre, e os ricos são brancos.

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E as vossas personagens femininas no meio disso tudo?
Juliana – Têm um certo desajuste com o padrão social, e acho que isso também permite a aproximação entre elas na história. As duas estão numa situação de isolamento, não se adaptaram totalmente aos meios em que vivem, e o Joel também – o conflito dele é que ele tem um instinto que impede que se adapte totalmente à sociedade. Nenhuma dessas personagens tem “as boas maneiras” que se usam.

Vocês reclamam uma inspiração de Walt Disney, e a própria maneira como vocês filmam São Paulo tem muito de fábula.
Juliana – Quando começámos a pensar visualmente a história, tivemos vontade de brincar com essas referências, de confrontar um imaginário clássico desse tipo de fábula com elementos que são do Brasil. Nas primeiras versões do guião, a Ana morava no centro de São Paulo, que tem construções mais clássicas, uma arquitectura mais gótica, mais fácil para um filme de terror. E quisemos romper com isso, sair dessa zona de conforto; a personagem da Ana, que é uma pessoa de classe alta que vem de um universo rural, já não moraria no centro da cidade, mas sim noutra zona de São Paulo que é meio Dubai, com prédios gigantes envidraçados. Seria legal tentar fazer um filme de horror nesse tipo de lugar um pouco horroroso… (risos)

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Marco – Damos o mote para uma coisa que é de agora, sem ir para um imaginário tipo Gotham City.

Juliana – E quisemos brincar. Por exemplo, a lareira traz um imaginário de conto de fadas, mas em casa da Ana é uma coisa bizarra - uma TV que passa uma imagem de lareira e que é um aquecedor eléctrico, uma coisa um pouco kitsch.

É um filme que pede ao espectador que se deixe levar, mas que traz guinadas de tom muito delicadas. Como é que se mantém o filme no fio da navalha sem cair no ridículo nem no sisudo?
Marco – É bem delicado. Pegando nesse elemento da lareira: a primeira vez que ela aparece no filme, as personagens estão apartadas, e a Ana dá uma ordem: liga a lareira. E a Clara liga a lareira. E é meio ridículo, você vê aquilo como um mundo ainda separado. Quando a lareira volta, as personagens já estão se encaixando, a Ana começa a contar a história de como ficou grávida, e é uma cena bem simbólica desse fio da navalha - objectivamente é uma situação meio ridícula, mas as personagens estão já se conectando, e sentimos o que há de afectuoso e de verdade nesse mundo meio artificial. Os sentimentos são muito verdadeiros, e vemos essa lareira a outra luz.

Juliana – Acho que o que nos guia é a emoção. Se você é verdadeiro consegue brincar com o tom, ter comédia, ter horror, desde que seja coerente com o que a personagem sente. Tivemos uma preocupação muito grande com isso, intuitivamente.

Neste momento há uma efervescência do cinema brasileiro, mas vocês trabalham mais no cinema de género. Sentem-se parte desse renascimento?
Juliana – É difícil dizer, porque o Brasil é muito grande, o cinema brasileiro não tem uma cara só. Esta geração tem várias pessoas que conhecemos desde a época das nossas curtas – o Kleber Mendonça Filho, o Felipe Bragança, a Anita Rocha da Silveira – e é uma geração muito cinéfila. A influência de outras cinematografias está sempre presente, e há muita gente a querer trabalhar com o género. Até o próprio Kleber - os filmes dele são profundamente políticos, retratam muito bem a partir do Recife como é a sociedade brasileira, mas ele usa limites narrativos que me lembram o cinema de suspense e de horror.

Marco – A variedade geográfica é muito importante, porque historicamente as coisas no Brasil são muito localizadas no eixo Rio-São Paulo. Para isso poder de facto virar uma geração ampla, com vozes que falem coisas diferentes, é legal que tenha uma variedade de géneros e um tipo de olhar que vem de um lugar específico.

Juliana – Acho que é resultado também das políticas públicas que surgiram nos últimos dez-doze anos, quando existiu um investimento estatal e um incentivo à descentralização da produção. Espero que essas políticas continuem.

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