Há tanta Lisboa impressa na memória dos seus clubes
Numa altura em que o aumento das rendas ameaça a permanência de algumas colectividades nos seus bairros, há um livro que quer preservar a memória colectiva de quem foi escrevendo a história destes espaços.
Façamos uma viagem no tempo, recuando 107 anos, quando uma mulher médica, republicana, feminista, sufragista, entra numa secção de voto para exercer esse direito. Foi a 28 de Maio de 1911, que Carolina Beatriz Ângelo entrou no Clube Estefânia, onde se encontrava a Assembleia Eleitoral de Arroios, para exercer um direito que as mulheres ainda não haviam conquistado. Ver votar a primeira mulher em Portugal é apenas uma das histórias do centenário clube de Arroios, fundado a 9 de Julho de 1890, que é contada num livro que quer preservar a memória colectiva dos espaços que fizeram a história de uma cidade, de um país.
Depois de escritos os capítulos sobre os clubes dos Prazeres, da Graça e do Lumiar, foi a vez de Arroios ver reunidos num livro a história destes clubes para que se continue a traçar o retrato do movimento associativo da capital, desde meados do século XIX até aos nossos dias. É o quarto volume do projecto “Colectividades de Lisboa”, uma iniciativa da câmara de Lisboa, através do Gabinete de Estudos Olisiponenses, que procura dar a conhecer “o legado histórico, cultural, recreativo, social e desportivo das colectividades da cidade”. Quem o diz é Maria João Figueiroa, a historiadora que visitou estes clubes, falou com os dirigentes e com os sócios mais antigos, folheou velhos registos e notícias da época, para passar à escrita deste “património”.
A ideia de pôr as histórias destes espaços em livro surgiu em 2006, quando Maria João era assessora do vereador Pedro Feist, responsável, na altura, pela pasta dos clubes e associações. "Estava a fazer um levantamento das colectividades da cidade e apercebi-me de que têm um património histórico interessantíssimo e uma história que se confunde com a própria história da cidade de Lisboa", conta a historiadora ao PÚBLICO.
No volume dedicado a Arroios, lançado no mês passado, figuram 12 colectividades que ainda se mantêm em funcionamento, numa altura em que o aumento das rendas ameaça o futuro de alguns clubes que se vêem sem fundos de maneio para continuar. Duas delas, nasceram ainda na Monarquia.
A mais antiga é o Ateneu Comercial de Lisboa, que data de 1880, e foi criado no âmbito das comemorações do tricentenário da morte de Camões, estando sempre ligado a vários movimentos culturais e sociais da cidade. Foi criado para defender os empregados do comércio, envolveu-se numa luta pela melhoria do horário de trabalho, pelo direito a ter mais dias de descanso.
Viu instalarem-se na vizinhança, nas Portas de Santo Antão, o Coliseu dos Recreios, o Teatro Politeama e a Sociedade de Geografia de Lisboa. Teve “um papel cultural expressivo e um papel social e desportivo muito importante”, nota Maria João Figueiroa ao PÚBLICO.
Dez anos mais tarde, em 1890, seria criado o Clube Estefânia, que se dedicou sobretudo à cultura e ao teatro amador. Pelas tábuas do clube passaram grandes nomes do teatro português, como Chaby Pinheiro ou Eunice Muñoz, que ali se estrearam. Hoje, o espaço acolhe uma universidade sénior.
“Muitas delas praticaram, desde a sua fundação, actividades relacionadas com a beneficência. Hoje, têm actividades muito importantes que contribuem para a coesão social”, nota a historiadora. A universidade é disso exemplo, já que a população sénior encontra ali um espaço para ocupar os tempos livres – da sueca à leitura, ou à ginástica – e “onde podem ter algum apoio durante o dia”.
Mas do trabalho de recolha da historiadora contam-se mais dez, fundadas já na República, como o Centro Escolar Dr. Salgueiro de Almeida (1911), a Lisboa Ginásio Clube (1918), o Sport Club do Intendente (1933), o Clube Desportivo de Arroios (1934), o Grupo Excursionista os Misteriosos da Oriental (1935), o Clube Atlético de Arroios (1937), o Estefânia Atlético Clube (1939), o Grupo Desportivo da Pena (1939). Mais recentes são o Clube Desportivo Camões (1986), associado ao Liceu Camões e ao Andebol, e a Casa do Concelho de Castanheira de Pera (1987), que servia para juntar a população oriunda daquela zona e divulgá-la na capital.
Ao restrito clube das centenárias, está prestes a entrar o Lisboa Ginásio Clube que sopra as 100 velas este ano, com peso na história, passada e recente, do desporto e da ginástica nacional, com atletas olímpicos do trampolim como Ana Rente e Nuno Merino.
O que lhes mantém as portas abertas?
As colectividades sempre funcionaram “como um pólo agregador da população”, repara a historiadora. No entanto, com o surgimento e massificação da rádio e da televisão, as actividades recreativas que se faziam nos clubes acabaram por ser substituídas pelo simples clique sem sair de casa.
Para fazer frente aos aparelhos, o Grupo Desportivo da Pena, chegou mesmo a fazer da televisão um negócio. Compraram um aparelho de televisão e prepararam uma sala como se de uma sessão de cinema se tratasse. E cobravam entrada. “Era uma forma de angariarem fundos para a colectividade”, recorda a historiadora.
Quando perguntamos o segredo que mantém vivas algumas destas associações depois de tantas décadas, Maria João Figueiroa não tem dúvidas: “É a enormíssima dedicação dos seus dirigentes”.
“É um universo interessante este do associativismo desportivo, cultural e recreativo, porque vive muito da cidadania, da noção de responsabilidade que estes dirigentes têm, que prescindem muitas vezes das suas horas de lazer, do conforto com a família, para se dedicarem aos outros”, aponta.
É até uma questão de justiça que se lhes reconheça o trabalho, nota: “Estamos muito habituados a ouvir falar em voluntariado, como se fosse uma coisa que surgiu agora. E não temos noção do peso e da importância que esse voluntariado - pouco reconhecido - tem tido na própria história da cidade de Lisboa, através desta intervenção no meio associativo. Tem sido isso que as tem mantido”, afiança.
Segundo aponta a autora destes livros, os clubes têm tido capacidade para se adaptar porque têm acompanhado a evolução dos tempos. "As [colectividades] centenárias têm sabido adaptar-se e têm tido, sobretudo, esta capacidade para cativar os sócios e continuar a mantê-los ligados à sua colectividade", explica.
Só que nem sempre é assim. Com o passar do tempo, algumas foram ficando moribundas. No caso do Ateneu, essa importância foi decaindo ao longo do tempo. Para trás ficaram os tempos dos campeonatos de xadrez, dos saraus de ginástica, da equipa de esgrima, das exposições, das tertúlias de leitura. A piscina, que era uma das principais responsáveis por ali fazer entrar dinheiro, também fechou. Hoje, o único resquício de vida no Ateneu é a Cervejaria Solmar, famosa não só pelos mariscos como pelos exuberantes azulejos e mobiliário interior, que andava em obras há uns meses para ser devolvida à cidade.
Para o futuro de alguns destes clubes, não se auguram tempos fáceis. Os que ocupam edifício grandes, antigos, em zonas nobres da cidade, acabam por ser assediados por grandes promotores imobiliários. Noutros casos, o aumento das rendas torna impossível às direcções dos clubes permanecerem nas sedes. São os casos, por exemplo, do Sport Clube do Intendente, do Ginásio do Alto do Pina, do Lusitano ou dos Leais Amigos.
“Há uma ligação muito estreita ao espaço geográfico onde estas colectividades surgem, sobretudo as centenárias”, aponta a historiadora, sugerindo que estas “fazem sentido” num determinado contexto geográfico.
“Quando às vezes se deslocam, há sempre dificuldade que [os fregueses] acompanhem a sua colectividade para uma outra freguesia, para um espaço que não é o seu”, continua, o que contribui para o desenraizamento, para a descaracterização dos bairros que tantos lisboetas se queixam agora de estar a sentir. Sobretudo no centro da cidade, onde estão as freguesias mais antigas, que, por isso, são as que têm mais e as mais antigas colectividades de Lisboa, nota Maria João.
Lisboa já fez um esforço por proteger estes espaços de apetites imobiliários. Em Março, a câmara de Lisboa aprovou, em reunião pública do executivo, cinco clubes que foram classificados como “Entidade de Interesse Histórico e Cultural ou Social Local”. São eles a Sociedade de Geografia, o Grémio Literário, o Círculo Eça de Queiroz, o Ateneu Comercial de Lisboa e a Academia dos Amadores de Música, todos concentrados na freguesia de Santa Maria Maior. Com esta distinção, deverão estar protegidos “em matéria do regime do arrendamento", disse, na altura, o autarca Fernando Medina.
Os clubes do agora
Mas nem só de colectividades centenárias se faz a história de uma cidade. Também as mais recentes servem o propósito da integração e o envolvimento dos moradores no bairro. O Lumiar, por exemplo, é uma freguesia antiga, zona de quintas, que outrora servia as actividades domingueiras, de quem fugia da cidade à procura de sossego. Mas que tem agora bairros modernos, onde existem várias colectividades novas, que surgiram no final do século passado e no início deste.
As associações de moradores assumem aqui “um papel muito interventivo na freguesia”, em especial na Alta de Lisboa, nota Maria João.
“Nesse contexto, há colectividades que assumem um papel de integração e de contribuição para a coesão social muitíssimo interessante. A Associação de Residentes do Alto do Lumiar, por exemplo, faz um papel muito importante de promoção do desporto junto das camadas mais jovens da população”, exemplifica a historiadora.
“As colectividades reflectem isso mesmo. Umas têm um passado e uma história centenária. Outras surgiram há pouco tempo, com a nova realidade habitacional da freguesia”, sustenta.
O objectivo agora é continuar o trabalho e catalogar as colectividades das restantes 22 freguesias da cidade. Os velhos (e novos) clubes das freguesias da Penha de França e de Campolide já começaram a ser escritos.