Para que serve a “carga fiscal”?
É necessário focar as atenções nas medidas que permitam reduzir este esforço fiscal sustentadamente a longo prazo, em vez de medidas (e debates) mais míopes.
Em “Uma estratégia orçamental sustentável para Portugal”* damos pistas para compreender a tradução prática que os planos orçamentais de médio prazo (como os apresentados no Programa de estabilidade) têm na atividade do setor público. A diferentes soluções deste “sistema de equações” corresponderão diferentes opções ideológicas e prioridades políticas – o importante é que a solução não seja impossível, criando expectativas aos cidadãos que não são para cumprir.
A recente discussão sobre a carga fiscal, sendo compreensível dado o esforço pedido aos cidadãos para a suportar com os rendimentos do seu trabalho, reforça a frustração do público. No entanto, induz também ao esquecimento do óbvio necessário ao equilíbrio orçamental: por muito crescimento que haja, não podemos, simultaneamente, querer menos impostos, mais despesa e menos défice. Numa altura em que o debate se tem centrado mais nesta carga fiscal, importa recapitular alguns pontos essenciais do que acontece em duas rígidas rubricas da despesa: as despesas com pessoal e as prestações sociais.
As despesas com o pessoal representaram cerca de 25% da despesa total das Administrações Públicas em 2017. Dependem pouco das decisões discricionárias de um dado Governo num dado Orçamento. São o resultado acumulado de decisões e legislação ao longo do tempo, decorrendo essencialmente de quatro fatores: volume e estrutura do emprego público, tabelas salariais, carreiras e avaliação, e suplementos.
O volume de emprego público tem aumentado desde 2014 (consequência de uma grande diminuição das saídas por aposentação), apesar da vigência da regra que tem tentado ser aplicada de duas saídas por cada entrada (mais recentemente três saídas por cada duas entradas). Apesar de muitos serviços enfrentarem esta restrição, na prática várias exceções levam ao seu não cumprimento no cômputo geral.
Nos últimos anos de execução orçamental excecionalmente bem-sucedida, com o défice a ser mais do que cumprido, as despesas com o pessoal são das poucas rubricas que derrapam e em que se acaba por gastar acima do que estava previsto no Orçamento. Além da referida evolução do emprego público, também outros fatores têm conduzido a esta realidade: a conjugação da reversão integral dos cortes com o início do descongelamento das carreiras contribui para a pressão da despesa nesta rubrica.
Uma análise comparativa revela que, num contexto de diminuição quase generalizada em vários países do peso do emprego público no emprego total de 2013 para 2015 (últimos dados disponíveis), Portugal diminuiu menos, apenas de 16% para 15%. No entanto, permanece abaixo da média da OCDE (18%). Isto sugere que, num contexto de manutenção do nível e variedade dos serviços públicos, a margem para se comprimir a despesa desta rubrica será exígua. O padrão de suborçamentação significa que, pelo contrário, é preciso aplicar aqui alguma da “folga” adicional. Tal não significa que não sejam necessárias mudanças nesta área, mas mais do que simplesmente querer aumentar ou diminuir o emprego público em Portugal, é preciso analisar as reais necessidades em termos de competências e emprego por setor e implementar uma estratégia de mudança.
Uma outra rubrica essencial da despesa pública é a das prestações sociais e, sobretudo, das pensões. Conjugando a Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações, devemos reter que só as pensões de reforma representam bem mais de um quarto da despesa do Estado, e as prestações sociais totais mais de 40%.
A sua evolução tem sido bastante regrada nos últimos anos. Entre 2014 e 2017 a despesa em prestações sociais da Segurança Social não cresceu, porque um reduzido crescimento das pensões foi ainda compensado por um decréscimo acentuado da despesa em prestações de desemprego. Porém, as pensões têm vindo a acelerar. Nos anos mais recentes de 2016 e 2017 terão crescido a um ritmo próximo dos 2,5% anuais e o OE 2018 perspetiva um crescimento ainda mais acentuado, de 4,3%.
Contudo, se no Programa de Estabilidade 2017-21 se previa uma taxa média de variação anual das pensões de 5,5%, implicando o crescimento do seu peso no PIB em 1 p.p., essas estimativas correspondem agora, no Programa de Estabilidade 2018-22, a uma manutenção do seu peso do PIB, crescendo as pensões a um ritmo semelhante ao do PIB nominal. É uma mudança desejável, mas uma eventual suborçamentação nesta rubrica coloca todo o quadro do Programa de Estabilidade em questão. Para este crescimento das pensões, mais do que propriamente a dinâmica demográfica, concorrerão as medidas de aumento extraordinário do valor das pensões que foram tomadas mais recentemente e, em 2018, a melhoria do crescimento económico, que tem um impacto positivo direto, por via da legislação em vigor, no valor das pensões.
No entanto, para analisar em maior detalhe a razoabilidade da variação prevista, seria necessário aceder a informação mais pormenorizada sobre os compromissos implícitos no sistema previdencial, mas não tem sido possível obter estes dados para utilização em análises independentes – como já referido e criticado pelo Conselho das Finanças Públicas.
Resumindo, só em salários e prestações sociais (leia-se pensões) está mais de metade da despesa pública, o que torna difícil elaborar uma estratégia orçamental sustentável que enfrente a realidade por detrás destas duas rubricas. Como ter serviços públicos sem os respetivos servidores? Como controlar a despesa em pensões sem afrontar “direitos adquiridos”?
A discussão sobre a carga fiscal só contribui para confundir mais os cidadãos quanto às reais dificuldades que enfrentam as políticas públicas. Não se pretende mascarar a realidade do peso dos impostos e contribuições sociais no rendimento dos cidadãos – a carga fiscal está abaixo da média europeia, mas o “esforço fiscal” (medido em termos do PIB per capita) está acima – e muito há a fazer na simplificação e transparência fiscal. Mas certo é que é necessário focar as atenções nas medidas que permitam reduzir este esforço fiscal sustentadamente a longo prazo, em vez de medidas (e debates) mais míopes.
* Pereira, P. T., Cabral, R., Morais, L. T. e Vicente, J. A. (2018). Uma estratégia orçamental sustentável para Portugal. Coimbra: Almedina.
O livro, onde estas questões são discutidas em maior detalhe, será apresentado por Daniel Bessa amanhã, pelas 17h, na Fnac do NorteShopping (Matosinhos, Porto).
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