As mulheres ciganas estão a fazer a sua pequena revolução
As ciganas portuguesas estão a levantar-se contra as várias formas de discriminação de que são alvo dentro e fora das suas comunidades. Que movimento é esse, que junta mulheres do país inteiro? Como começou? Quais são as suas prioridades?
Guiomar Sousa é mediadora sociocultural. Está habituada a fazer a ponte entre pessoas ciganas e pessoas não ciganas. Invoca o dia em que, contra o concurso Miss América, 400 feministas se dispuseram a queimar soutiens, cintas e outros “instrumentos de tortura”. “Estamos atrasados 50 anos”, comenta aquela activista, de 36 anos. “O movimento feminista é uma novidade nas comunidades ciganas, mas a nossa ideia não é chocar. Estamos a adaptar o feminismo à nossa realidade.”
Serão perto de duas dezenas as mulheres que fazem parte deste movimento. Nos últimos cinco anos, foram-se cruzando em encontros e acções de formação, percebendo pontos em comum, trocando contactos, forjando amizades. Neste último ano, têm-se desdobrado pelo país a dizer que são “mulheres e ciganas” e que “existem e resistem”.
Maria Gil – que já foi feirante e empregada de balcão e faz teatro comunitário e teatro do oprimido – assume a autoria da frase que identifica o movimento. Em Maio de 2017, estava ela no Porto, na manifestação “Mexeu com uma, mexeu com todas”, olhou em redor e reparou que ela e a filha eram as únicas ciganas. “Faziam poemas nos quais incluíam mulheres negras, mas nem uma palavra sobre mulheres ciganas. De uma forma muito espontânea, peguei num bocado de cartão e escrevi: “Mulheres e ciganas, existem e resistem.” Partilhou a imagem nas redes sociais. “A frase começou a ser usada.”
“A história das mulheres ciganas é uma história de resistência”, sublinha aquela activista, de 46 anos. Há uma discriminação externa que dificulta o acesso à educação de qualidade, ao emprego, à participação na vida pública. E uma discriminação interna que faz com que rapazes e raparigas, homens e mulheres não sejam tratados da mesma forma dentro das suas famílias e das suas comunidades.
“Estamos a viver um tempo muito bom”, considera o alto-comissário das Migrações, Pedro Calado. “Tínhamos apenas a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, no Seixal, agora temos a Ribaltambição, na Figueira da Foz. E há outras mulheres muito activas, como a Cátia Marisa, de São Brás de Alportel, a Guiomar Sousa, de Espinho, a Maria Gil, do Porto, a Toya Prudêncio, de Gondomar, a Vanessa Matos, de Braga”, prossegue. “Como diz um provérbio cigano, ‘A fogueira começa com pequenos ramos’. Esse é o momento em que estamos. Estamos a começar a fogueira.”
Já têm uma agenda concorrida. Algumas estiveram no passado fim-de-semana no Festival Política, organizado pela Produtores Associados e pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural, em Lisboa. Muitas estão este fim-de-semana na Academia Política das Comunidades Ciganas, em Torres Vedras, iniciativa do Conselho da Europa, que está apostado em promover a participação.
Guiomar Sousa foge agora de todos os holofotes. Morreu-lhe o pai há pouco tempo. E o luto, nas comunidades ciganas, é um assunto muito sério. Um lenço esconde-lhe o cabelo e roupas largas, longas, negras, escondem as formas do seu corpo. Não usa maquilhagem, nem jóias. Não ouve música, nem se deixa fotografar.
Quem não deixa de estar em todo o lado apesar do luto integral é Olga Mariano. O seu marido já morreu há mais de 20 anos. E a história da luta pela emancipação das mulheres ciganas confunde-se com a história desta mulher, de 68 anos.
A pré-história
Há 50 anos, Olga Mariano fez algo que cigana alguma havia feito: tirou a carta de condução. Não foi um ímpeto feminista. “Às vezes, a necessidade obriga.” O pai, que era vendedor ambulante, vendera um grande lote de tecido a um alfaiate que lhe pagara com um Fiat 1100 cinzento-claro. Ele nunca fora à escola. “O meu irmão mais velho sabia ler e escrever, mas não tinha a 4.ª classe. As minhas duas irmãs estavam casadas. A única solteira era eu. O meu pai emancipou-me para tirar a carta.”
Viviam no Fogueteiro, na freguesia da Amora, no concelho do Seixal. Olga conduzia os pais às feiras de Sesimbra e de Cascais e às festas da família em Évora. Houve críticas. “Como é possível uma mulher cigana conduzir? Como é que o pai a deixou tirar a carta? Amanhã ela casa-se e ele vai ficar desprevenido.”
A família de Olga era uma excepção. O pai, fervoroso adepto de futebol, lamentava não conseguir ler o jornal A Bola. E queria que o filho e as filhas aprendessem a ler, a escrever e a contar. Eram os únicos ciganos daquela escola. Quase não havia ciganos nas escolas portuguesas. A esmagadora maioria não podia permanecer mais do que 24 horas num sítio, andava de terra em terra a ler a sina, a vender tapetes, cobertores, atoalhados, peças de tecido e outros produtos, a fazer pequenos trabalhos.
A carta de condução não foi apenas útil para a família de origem. Foi também útil para a família que Olga formou aos 22 anos. Conduzia o marido à feira e com ele trabalhava de segunda a sábado. Ao longo de mais de 20 anos, tiveram banca em Almada. De repente, ele adoeceu. Ela enviuvou volvidos três anos.
Olga fez tudo como manda a tradição. Cortou o cabelo bem curtinho. No primeiro ano, ia ao cemitério todos os dias. Nos primeiros cinco, tinha de usar dois lenços – um mais pequeno, interior, que cobre o cabelo, e outro maior, exterior, que vem da cabeça até à cintura. Só depois podia usar apenas um, atado de trás para a frente. A indumentária era o que menos a preocupava. Pior era aquela dor, pior era reorganizar a vida. “A coisa descambou”, recorda. Os filhos eram muito novos. “Ainda precisavam do braço forte do pai. Eu própria não tinha cabeça para nada. Foi uma fase muito ruim.”
Recorreu ao rendimento mínimo garantido, o actual rendimento social de inserção. Era nova aquela medida destinada a aliviar a pobreza extrema e a ajudar a encontrar forma de sair dela. Num instante, Olga, a filha, Noel Gouveia e outras três ciganas, Alzinda Carmelo, Anabela Carvalho e Sónia Matos, foram seleccionadas para frequentar uma acção de formação. Como dizer não? Em vez de 150 euros de prestação social, receberiam uma bolsa equivalente ao salário mínimo nacional, que rondava os 350 euros.
A mediação sociocultural despontava em Portugal por recomendação de Bruxelas. Em 2000, os mediadores começaram a entrar em diversas escolas de territórios considerados críticos. Olga, por exemplo, assumiu de imediato o lugar de mediadora no Bairro Padre Cruz, em Lisboa, e lá se manteve até 2005.
Não foram só as portas de uma nova profissão que se abriram. Por sugestão de um formador, logo em 2000, aquelas cinco mulheres fundaram a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas. Os ciganos, em particular as mulheres, continuavam a deixar a escola muito cedo. E elas queriam reduzir o absentismo escolar, reverter o abandono escolar, ajudar as mulheres a conciliar a vida familiar e profissional. No virar do século, Olga, a mais velha e mais experiente das cinco, tornava-se a primeira mulher cigana a liderar a primeira associação do género em Portugal.
O impulso exterior
Durante 14 anos, a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas foi a única. Porquê? “Muita relutância dos homens e falta de coragem das mulheres”, resume Bruno Gonçalves, mediador sociocultural que partilha com Olga Mariano o lugar de mais influente activista cigano.
Além do domínio masculino colocar grandes entraves ao desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres, não há tradição associativa na população cigana. As poucas organizações que tinham aparecido no pós-25 de Abril quase que se resumiam à figura de algum homem respeitado num determinado meio e ao seu círculo.
Nos últimos 20 anos, pouco a pouco, alguns homens e algumas mulheres foram-se capacitando através de acções promovidas por entidades públicas, como o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que já teve outros nomes, e privadas, como a Rede Europeia Antipobreza – EAPN Portugal.
Se lhe perguntarem o que serviu de trampolim às mulheres, Bruno Gonçalves apontará, sem hesitar, duas iniciativas. Primeiro, o Escolhas, um programa de inclusão social de crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis criado pelo Governo em 2001. Segundo, o Programa Europeu de Formação para Mediadores Ciganos – Romed, lançado pelo Conselho da Europa em 2011.
Foi no seio do Romed que em 2013 nasceu a Letras Nómadas, liderada por Olga Mariano e Bruno Gonçalves, que já fora presidente da Associação de Ciganos de Coimbra e vice-presidente do Centro de Estudos Ciganos. A liderança da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas passou para Noel Gouveia, que está com 43 anos e casada com um não-cigano.
De repente, tudo convergia. Mulheres ciganas de toda a Europa juntavam-se em Helsínquia para definir a Estratégia para o Progresso das Mulheres e Raparigas Ciganas. Portugal aprovava a sua primeira Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (e que está a rever neste momento). Finalmente, ia haver dinheiro para apoiar o associativismo cigano e alguns pequenos projectos.
Em Novembro de 2013, em parceria com a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, a Letras Nómadas organizou o I Encontro de Mulheres Ciganas, em Lisboa. “Feliz o dia em que decidimos fazer isso”, comenta Bruno Gonçalves, que levou a mulher, a sogra e a cunhada. Há um antes e um depois daqueles dois dias a pensar o presente e a procurar formas de construir um futuro de emancipação. “Em 20 anos de activismo cigano, nunca andámos tanto. As mulheres são a mudança.”
A cunhada, uma mediadora de 37 anos chamada Tânia Oliveira, resume o encontro em três frases: “Conhecemos várias mulheres com as quais temos objectivos em comum. Isso veio dar mais força às que pensavam que estavam sozinhas. Até hoje lutamos pelo empoderamento das outras mulheres ciganas.”
Na tentativa de fomentar a participação, da segunda edição do Romed formaram-se grupos de acção comunitária em sete municípios. O da Figueira da Foz, coordenado por Tânia, deu origem à Associação Ribalta Ambição – Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas. Ela é a presidente e a irmã, Marisa Oliveira, dois anos mais velha, é a vice-presidente. No Verão do ano passado, organizaram o II Encontro de mulheres ciganas. Sob o lema “Siñando Kali [Ser Cigana] no século XXI”, quiseram abrir espaços de diálogo entre ciganas de todo o país, mostrar bons exemplos, semear confiança.
Novos rostos
Tânia Oliveira gosta de dizer que “é solteira e boa rapariga”. Foge à conversa sobre a pressão social para encontrar um marido e ter filhos, algo que afecta ciganas e não ciganas que já ultrapassaram a barreira dos 30 anos. Prefere pôr a tónica na flexibilidade para trabalhar, estudar e lutar pela igualdade de género.
Deixou a escola findo o 4.º ano, apesar de no seu tempo a escolaridade obrigatória ir até ao 9.º ano. “Eu e a minha irmã queríamos estudar, mas a escola era longe e não tínhamos quem nos levasse”, relata, numa mesa de café. “Eu andava nas feiras, não tinha condições de as levar”, acrescenta a mãe, Maria de Fátima, sentada ao lado.
A escola não fazia parte das prioridades. A venda ambulante garantia o presente dos pais e haveria de garantir o futuro dos filhos. O abandono escolar precoce era “normal”. “Bem lá no fundo, acreditava que o meu futuro não passava pelas feiras e mercados, nem pelo papel formatado de mulher que cuida dos filhos e da casa”, afirma. “Sabia que podia alcançar muito mais sem comprometer a minha identidade cigana.”
Aos 18 anos, fez um curso profissional que lhe deu equivalência ao 6.º ano. Tornou-se mediadora sociocultural nas escolas da Figueira da Foz. “Foi um enorme prazer ajudar a minimizar o absentismo e o insucesso escolar”, assegura. Esteve lá seis anos. Teve outros trabalhos temporários de mediação. Esteve um ano no serviço de habitação social e outro no transporte de alunos com necessidades especiais. Através do Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, obteve o 9.º ano. Entretanto, despertou nela o desejo de se licenciar. “Para me concretizar enquanto mulher e para dar o exemplo”, justifica. Candidatou-se ao ensino superior, via programa +23. E está a fazer o curso de Animação Socioeducativa na Escola Superior de Educação de Coimbra.
Entrar agora até parece fácil, difícil mesmo é ter bons resultados. Está a ser o cabo dos trabalhos. “Passei um bocadinho…. Tenho de acompanhar jovens que tiveram um percurso escolar regular. Não tenho explicações. Estava a trabalhar até às 19h na Figueira da Foz e as aulas começavam às 18h30 em Coimbra.” O contrato de trabalho acabou. “Vou ter de ir mais às aulas, vou ter de me esforçar mais...”
Tem uma bolsa e um tutor. Faz parte do Opre, que começou por ser um projecto-piloto e se tornou uma política pública de acesso ao ensino superior gerida pelo ACM, em parceria com a Letras Nómadas e a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens. No ano lectivo 2015-2016, eram oito os estudantes apoiados. Agora, são 29. “Cada ano, vamos multiplicando”, orgulha-se.
A educação parece-lhe fundamental para a mudança de ideias feitas acerca do seu povo. “Temos um objectivo? Temos. Vamos ter obstáculos? Vamos. Vamos ser apoiadas por alguns? Vamos. Vamos ser criticadas por outros? Vamos. Mas isto faz parte do percurso. É isto que faz a mudança.” Há uma mensagem que vai repetindo: “Trabalho e estudo, mas nunca deixei de ser cigana. Continuo a respeitar a minha comunidade e a ter o respeito da minha comunidade e isto para nós, enquanto mulheres e ciganas, é fundamental.”
A escolaridade como bandeira
As pioneiras assumiram a escolarização como prioridade. “A minha bandeira é a educação. É o instrumento que nos dá a partilha”, enfatiza Olga Mariano. E é essa também a bandeira das novas activistas ciganas. “É a melhor que podemos ter”, corrobora Guiomar Sousa. “Permite reconhecer e lutar pelo que é nosso por direito.”
A escolaridade da população cigana é muito baixa. “Atinge proporções mais preocupantes entre as mulheres, que na sua maioria não ultrapassam a barreira do 1.º ciclo do ensino básico”, segundo o Estudo Nacional das Comunidades Ciganas, feito por Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias em 2014, a pedido do ACM. E interfere em tudo – no acesso à formação profissional e ao emprego, na capacidade de perceber o funcionamento das instituições, na possibilidade de participar na política.
A presença de crianças e jovens ciganos nas escolas portuguesas mais do que duplicou em 20 anos. Poucos, porém, terminam o 3.º ciclo e ainda menos o secundário, segundo o Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017.
Na tentativa de fazer com que todos cumpram a escolaridade obrigatória, que agora vai até ao 12.º ano, o Ministério da Educação criou outras ofertas educativas, como os Percursos Curriculares Alternativos, os Programas Integrados de Educação e Formação ou os Cursos Profissionais, onde está grande parte dos alunos ciganos. E o ensino doméstico, o ensino em itinerância e o ensino à distância.
A questão é complexa, até porque a escola é uma realidade recente na vida dos ciganos portugueses e a mentalidades não mudam do dia para a noite. Se dúvidas houvesse, bastaria ver que uma das netas de Olga frequenta o ensino doméstico. E essa não é uma escolha da avó. “O melhor é fazer tudo direitinho até ao 12.º ano, mas se vão tirar as meninas da escola... eu costumo dizer: quem não caça com cão caça com gato.” Como tem equivalência ao 12.º ano, assumiu o papel de tutora. “Eu mantenho-a ali certinha. Ela não falha.”
Olga associa a escolha do filho e da nora à “censura social”. Moram a quatro ou cinco quilómetros da escola. O horário dos transportes públicos nem sempre coincide com o horário escolar da menina de 12 anos. Os pais trabalham, não podem aparecer à hora certa para a transportar entre cá e lá e não querem que ela seja objecto de comentários. Quando isso acontece, há processos de marginalização dentro da comunidade.
O argumento étnico é conhecido. A honra é importantíssima no seio das comunidades ciganas. A honra das famílias tradicionais assenta no comportamento das mulheres, que se devem manter castas até ao dia do casamento. A opinião dos outros membros da comunidade é muito pertinente. Para garantir que uma rapariga não é alvo de falatório, a partir da puberdade limitam-se os contactos com rapazes.
“Nós ainda vivemos na aldeia, mesmo estando nos meios urbanos”, explica aquela dirigente associativa. “As nossas aldeias são os bairros sociais. Toda a gente sabe a vida de toda a gente. Há aquela censura. Continuamos a ter um grande controlo social, porque vivemos à margem – não porque queremos, mas porque as câmaras nos põem em bairros sociais e os não-ciganos não nos querem ao pé deles.”
O rendimento social de inserção tem tido um papel fulcral. Para não arriscar perder aquela prestação social, muitas famílias mantêm as crianças e jovens na escola e algumas mulheres têm iniciado ou retomado a trajectória escolar através de programas de educação alternativos, como a alfabetização de adultos, o Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências ou a Iniciativa Novas Oportunidades. A sensação de que a venda ambulante é uma carreira em vias de extinção também é algo motivador.
Pode ser uma revolução, apesar de todas as limitações. “Fui beneficiária do RSI durante três meses”, sublinha Noel Gouveia. “Há 17 anos que sou contribuinte.” É mediadora sociocultural, professora de dança cigana, dirigente associativa. Também saiu da escola com o 4.º ano. Foi fazendo formações. “A escola é a base de tudo.”
Já fez mediação em escolas. Agora mesmo é mediadora Opre. “Eu namoro a família para que ela permita o casamento entre a filha e o curso e namoro a universidade, como se fosse a sogra, para ela receber bem a nora”, brinca. “Tem sido uma experiência única e de verdadeira mudança dentro das comunidades ciganas e fora delas. Daqui a uns anos, vamos ter muitos licenciados. Nada como ter exemplos vivos.”
Dar visibilidade a casos exemplares
Por ser considerada um exemplo para outras mulheres, Toya Prudêncio, 30 anos, recebeu o galardão de Cigana do Ano em 2016. “É sinal que estou a percorrer o caminho certo”, orgulha-se. Foi a segunda vez que tal distinção foi atribuída pela Letras Nómadas. Guiomar Sousa recebera-a em 2015.
Também saiu da escola finda a 4.ª classe. Tinha de limpar, cozinhar, lavar roupa e criar a irmã, de três anos. “Eu tinha o sonho que acho que toda menina tem: casar-se, ter filhos, ter um lar.” Conheceu o marido, Bruno Prudêncio, numa festa de noivado, contava 16 anos. Começaram a falar às escondidas. Volvido meio ano, uniram-se.
Não fizeram um casamento tradicional cigano, com três dias de festa, porco no espeto, sucessivas mudas de roupa. Fizeram um “fugimento”, isto é, desapareceram durante três dias. Andaram a passear pela região centro. No regresso, foram recebidos pelas famílias em festa. Como a prioridade é manter a honra da família, se um rapaz e uma rapariga têm sexo, as famílias consideram que estão casados.
Toya deixou a casa da família, na Maia. Estiveram um mês em casa dos sogros, em Gondomar. E arrendaram uma casinha que era “metade” da sala do apartamento que hoje ocupam. “Nos primeiros anos, as feiras ainda davam. Depois, começamos a ver que não era vida”, conta ela. Ele queria voltar a estudar. Abandonara a escola no 6.º ano. Fez um curso de educação e formação de adultos que lhe deu equivalência ao 9.º.
Toya está a contar esta história sentada à volta da mesa da sala. O marido está sentado no sofá, a estudar, e diz: “Tinha o 9.º ano, não consegui emprego. Toca a voltar à escola. Três anos e meio. Tinha de apanhar três autocarros. Tirei o 12.º ano – um curso profissional de técnico multimédia. Agora vai surgir qualquer coisa. Incrível. Só mesmo filmando as caras que as pessoas fazem. As pessoas não têm noção – a cara que fazem, o ar de riso, o ar de quem está enojado por estar na nossa presença.”
Não foi perda de tempo. Entrou como cantoneiro na Junta de Freguesia de Baguim do Monte. O presidente olhou para o currículo e mudou-o para a secretaria. Durante cinco anos, trabalhou lá. “Sempre através de medidas de emprego, sem direito a subsídio de férias, subsídio de Natal, subsídio de desemprego.”
Toya começou a pensar na possibilidade de voltar a estudar. “A vida estava estabilizada.” A câmara atribuira-lhes um apartamento. Todos os dias, o marido ia para o trabalho, as filhas iam para as aulas e ela ficava em casa. “Eu sempre gostei de saber mais. O meu cérebro nunca andou muito quietinho.”
Pensava começar por uma certificação de 6.º ano. Bruno Gonçalves, “esse grande desestabilizador”, desafiou o casal a tentar entrar no ensino superior, através do +23. Tinham de se inscrever em duas cadeiras isoladas, para ver como se adaptavam. “Apliquei-me 100%. Às vezes, estávamos os quatro aqui a estudar.”
Bruno entrou logo no curso de Educação Social na Escola Superior de Educação do Porto. Toya não conseguiu entrar à primeira. Virou-se para outro lado. Começou este mês o curso de Educação da Universidade Aberta.
Os sonhos de Toya alteraram-se. “O meu sonho é acabar o meu curso e arranjar um emprego, dar uma vida melhor às minhas filhas. O que me imagino a fazer? Tanta coisa! Jesus! O que mais quero fazer com este curso é empoderar jovens, incentivá-los, mostrar que há outros caminhos. Quero trabalhar com jovens de etnia cigana e não só. Nem só os de etnia cigana precisam de incentivo. Moro num bairro social e vejo isso.”
O teste de virgindade e outros tabus
O entusiasmo não abafa a necessidade de medir as palavras. Assumindo-se como feminista, isto é, como defensora da igualdade de género, Guiomar Sousa explica o cuidado: “O feminismo é um terreno minado. Temos de saber onde pisamos para que os nossos tenham a plena noção do que nós defendemos.”
As activistas estão mobilizadas para lutar pelo direito à educação, pelo conhecimento da história e da cultura da população cigana, contra a discriminação étnico-racial, contra os estereótipos de género, pelo “empoderamento” das mulheres. Isso é evidente nos projectos que têm desenvolvido com o Fundo de Apoio da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Não discursam sobre práticas culturais nefastas.
O grande tabu é o teste de virgindade. Há quem se limite a afirmar que o assunto é privado (inúmeras mulheres sentem-se honradas e sentem que honram as suas famílias com tal prática). Há quem se limite a dizer que é raro (a maior parte dos casais, hoje, opta pelo “fugimento”). E há quem veja nesta prática um atentado aos direitos humanos, mas tema as reacções dos defensores das tradições (afinal, a ideia é provar que uma mulher pode estudar, trabalhar, ser activista sem deixar de respeitar as tradições).
Há reacções defensivas quando se puxa pelo assunto casamentos arranjados. “Ninguém é obrigado a casar-se”, frisa, por exemplo, Olga Mariano. Os pais podem combinar tudo quando os filhos são crianças, mas não os podem forçar. A rapariga pode “dar cabaças”, isto é, pode romper o compromisso.
A mesma reacção defensiva ocorre quando o assunto é o casamentos precoce. “Nenhum pai quer que uma filha se case antes dos 18 anos”, afirma a activista. Só que muitos, como já se disse, optam pelo “fugimento”. Basta-lhes desaparecer umas horas. “Culturalmente, não há namoro. Quando um rapaz toca numa rapariga, é para ficar.”
Para Maria Gil, o maior desafio de qualquer feminista cigana “é criticar as estruturas patriarcais internas sem reforçar os estereótipos negativos sobre a sua comunidade”. A população cigana não é homogénea. As comunidades são muito diversas. E o machismo não é um exclusivo destas comunidades.
“Estamos a começar a fazer alguma coisa. A partilha de preocupações parece pouco, mas já é alguma coisa”, realça. A escolaridade não é só uma via para o emprego. “A escolarização vai abrandar o ritmo dos casamentos precoces. E criar massa crítica de práticas que vão contra a dignidade da mulher.”
Diz coisas que nenhuma outra activista se atreve a dizer. Como esta: “A violência doméstica é silenciada. Uma mulher cigana não pode denunciar um homem cigano à polícia. Conheço mulheres ciganas que fizeram isso e estão fora do país. Os filhos não falam com elas. O facto de terem fugido de uma história de violência faz delas umas putas.” As separações, como as uniões, são assunto de toda a família.
“Às vezes, não podemos fazer esta exposição”, esclarece Maria Gil. “Eu posso, porque já não tenho tanto medo, tenho algum. Há mulheres activistas que não podem dizer tudo o que pensam. Têm de ter o aval do marido. Vivem com aquele medo de, a qualquer momento, ver a sua caminhada interrompida….”
Já foi ameaçada por se assumir como feminista, por falar do que não se fala, por contestar homens mais velhos. “Já recebi telefonemas: ‘Vê lá como é que falas da próxima vez que fores à televisão.’ Já apanhei alguns sustos.” Não é só o sexo masculino. “O machismo é tão perverso que gera nas mulheres um sentimento de protecção.” Muitas “são umas patetas alegres, têm um homem que toma conta delas e defendem que há as mulheres sérias, que são firmes, castradoras, e as outras, que ousam fazer as suas opções”.
Às vezes, cansa-se, mas não se cala. “Compreendi que era importante ser voz. E a verdade é que o faço de uma forma, se calhar, diferente da que outras fazem, porque elas têm um suporte que eu nunca tive”, diz. “Tenho de fazer valer o meu direito à liberdade. Desde cedo me vi privada de liberdade.”
Maria Gil tinha sete anos quando o pai morreu. A mãe tirou-a da escola. Deixou-a voltar aos oito, de luto carregado. Voltou a tirá-la quando ela concluiu o 4.º ano. “Resisti. Percebi que era tratada de forma diferente por ser menina. Por ser menina, não podia usar calças. Por ser menina, não podia sair sozinha.”
Havia regras que não lhe faziam confusão. Não sentia falta de saídas noturnas, para bares ou discotecas, por exemplo (“Havia tanta festa em casa”). Mas outras faziam-lhe e rebelava-se contra elas. Devorava os livros dos primos, que continuavam a ir à escola. Estudava sozinha. Fez o 6.º ano autopropondo-se a exame.
Foi fazendo as suas escolhas – e pagando o preço. Casou-se com um não-cigano com quem teve três filhos. “Era uma história de amor que eu queria viver.” Separou-se. Esteve uns anos sozinha. Juntou-se a outro não-cigano. Teve uma filha. E sentiu-se muitas vezes posta de lado por isso. As relações com não-ciganos não são bem vistas.
Nota uma espécie de medo. “Isso revelou-se mais quando decidi não voltar para casa da minha mãe com os meus quatro filhos, ficar a morar com eles no centro da cidade, sem o controlo directo de familiares.” Que exemplo está ela a dar a outras meninas e mulheres? “Mostro que é possível uma mulheres estar sozinha e isso provoca receio numa população que está estruturada em torno da família.”
Alerta várias vezes para a necessidade de não se generalizar. “Esta é a minha experiência. Há mulheres ciganas que não se identificam comigo. Há mulheres que por causa disso me dirigem insultos. E há mulheres com as quais não me identifico de todo. Eu não me identifico com mulheres que silenciam a opressão.”
Cada uma das mulheres que dão forma ao movimento tem uma história única. “Este movimento pode levar a alguma coisa”, acredita. “Não é um movimento registado. É uma sucessão de palavras e de acções. Cada mulher vai dando o seu contributo. No Norte não temos uma associação. A ideia é criar uma e fazer um trabalho mais consistente.”
Vender sonhos
A Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação 2018-2030, aprovada em Janeiro, assume como objectivo central a eliminação dos estereótipos de género. Reconhecendo que estes se cruzam com outros, reconhece necessidades específicas de mulheres ciganas, afrodescendentes, idosas, com deficiência, migrantes, refugiadas.
Do Plano de Ação para a Igualdade entre Mulheres e Homens consta o “envolvimento de crianças ciganas, particularmente meninas, em actividades de promoção do ensino e de combate ao abandono escolar”. E o Plano de Combate à Violência contra Mulheres e Violência Doméstica refere “programas específicos para a intervenção junto de vítimas em situação de especial vulnerabilidade em virtude da intersecção de vários factores de discriminação”, incluindo mulheres ciganas.
“Já fizemos muito trabalho”, suspira Noel Gouveia. No início deste ano, a sua associação passou a partilhar a sede com o Centro Romi, um espaço comunitário projectado por oito mulheres ciganas. “Já passámos esta luta para outras mulheres. Isso é muito bom, mas no fundo estamos a vender sonhos sem segurança.” Sonhos sem segurança? “Estamos a incentivá-las a sair do rendimento social de inserção, a estudar, a arranjar emprego, mas ninguém nos dá emprego, temos de ser nós a criar emprego para nós. Aquelas mais clarinhas não dizem que são ciganas e arranjam um trabalhinho. As mais escurinhas, como eu, não.”
Conta 17 anos de sucessivos trabalhos temporários. “Estou tão precária e insegura como se estivesse na praça. Na praça, tínhamos de comprar à noite para vender de manhã. Aqui é igual. Não sei se amanhã vou ter projecto.” Olha para a filha, que tem nove anos e está no 3.º ano. Não pode desistir. “Gostava que a minha filha não fosse identificada pela etnia. Ela é mulher, é portuguesa, faz parte da raça humana. Para os não-ciganos é a ciganita, para os ciganos já não é cigana, porque o pai dela não é cigano. Ela costuma dizer que não é só uma sandes de queijo, nem só uma sandes de fiambre, é uma sandes mista.”