Francisco, a praga das notas de rodapé, a Universidade e a vida
Tristes os povos e as cúrias que se refugiam no saber livresco para, amiúde, ocultarem a falta de saber de experiência feito, o conhecimento dos outros, a inteligência emocional, a empatia, as hoje ditas soft skills, amiúde mais importantes que uma licenciatura.
Ao ler a mais recente exortação apostólica de Francisco, Gaudete et exsultate! (Alegrai-vos e exultai!, Mt 5, 12), dada no Dia de São José, com o seu tão humano apelo à santidade na vida quotidiana, não pude deixar de pensar nas críticas que têm sido dirigidas ao sucessor de Pedro e em um conjunto de vícios de que padecem tantos sectores da nossa sociedade, em especial as Universidades.
Em surdina, ou nem tanto, muitos criticam Francisco por não ter a dimensão intelectual de Bento XVI. Não sei bem o que é isso e não me lembro de me terem alguma vez ensinado que no CV de um Papa tem de constar uma série de pós-doutoramentos em qualquer um dos ramos em que se divide a Teologia. Aliás, conhecemos todos grandes sacanas diplomados, afogados em graus académicos e que pouco mais fazem que infernizar a vida dos demais. Eça, sempre ele, captou-o na perfeição: é o tipo (ou a tipa) que não cumprimenta a senhora da limpeza e que selecciona com quem se relaciona em função do que lhe podem render em prebendas económicas ou de ascensão social. É o indivíduo que se fecha num discurso hermético em aulas soporíferas, propositadamente ou – quase sempre – por não ter nada a transmitir, excepto uma espécie de “masturbação mental” circular, um conjunto de palavras bonitas, adquiridas em dicionários de antanho, que podem até captar alguma atenção junto de aprimorados estetas, mas que não cumprem o seu objectivo.
Outra marca desta pretensa superioridade, típica do Direito, é a nota de rodapé. O texto pode até não conter uma ideia ou um bom resumo do estado da arte, mas está enxameado de citações, tanto mais valiosas quanto mais páginas encherem e mais autores estrangeiros convocarem. E não se pense que existe sempre uma ligação incindível entre o texto e a nota de rodapé que, na verdade, devia limitar-se a complementar e a ilustrar o primeiro. Nada disso. Formou-se uma espécie de convenção não escrita no sentido em que esse espaço lúdico é usado para demonstrar conhecimento ou erudição sobre aspectos que só levemente – às vezes, nem de raspão – contendem com o essencial da mensagem. E se houver citações em Alemão, é o delírio, como se apenas aquele povo tivesse sido dotado de inteligência e a coisa mais banal em qualquer ramo de Direito, quando escrita na língua germânica, ganha logo outra pátina.
Voltemos a Francisco. Lemos que uma parte da Cúria está insatisfeita com a tal falta de pátina, com um alegado exagero na abertura ao mundo e à reflexão sobre a mudança de alguns aspectos atinentes a regras provenientes da Tradição e não das Escrituras. Como assistimos à pretensa defesa do actual Papa pelo Emérito, que terá escrito sobre Francisco que o seu pensamento teológico é profundo, o que teria sido encarado como uma espécie de crítica velada. Faltam notas de rodapé a Francisco. Ao ler esta e outras exortações apostólicas de Bergoglio, entendo-as, nelas reconheço o ser humano como eu que me leva a reflectir sobre as hipóteses que tenho de mudar, lentamente, passo a passo, admitindo os meus lados mais escuros e, depois, tentando iluminá-los à luz da mundividência cristã.
Para além de relembrar que Francisco é Jesuíta e que esta congregação não é propriamente conhecida por ser constituída por patetas, a soberba intelectual dos críticos, que, como disse, se repete nos demais campos societais, é a melhor prova que o caminho para a santidade começa por renunciar a essa soberba e aceitar a humildade. O conhecimento só existe ao serviço dos outros e, que eu saiba, a importância de um Papado não se mede pelas notas de rodapé de encíclicas, exortações apostólicas ou cartas pastorais. Mede-se pela capacidade de exemplo, de motivação, de denúncia, de perdão, de amor e misericórdia infindos, verdadeiro eixo de toda a mensagem cristã.
Tantas e tantos que sentiram o apelo à santidade e nem sequer sabiam ler ou escrever. E, no entanto, foram capazes de actos tão nobres e humanos que nem sequer passariam pela cabeça de gente que, como em Portugal, adora os títulos académicos, verdadeiro sinal de país terceiro-mundista. Lembro-me sempre do que me contou a minha prima Arabela (Paula para a família mais próxima), uma vez que foi ao cabeleireiro, em Coimbra, cidade dos “doutores”. Uma certa senhora tentou passar-lhe à frente. Obviamente, a minha prima perguntou à cabeleireira a razão de não ser seguida a ordem de chegada. “A Sra. é Dra. e tem pressa para um compromisso”. A minha prima, que não se deixa ficar, atirou rapidamente: “Não sabia que para vir ao cabeleireiro era preciso trazer a certidão de habilitações! Também sou licenciada e cheguei primeiro”. E que não fosse, como é evidente.
Tristes os povos e as cúrias que se refugiam no saber livresco para, amiúde, ocultarem a falta de saber de experiência feito, o conhecimento dos outros, a inteligência emocional, a empatia, as hoje ditas soft skills, amiúde mais importantes que uma licenciatura. Entendamo-nos: o estudo é essencial para nos prepararmos a ler e intervir sobre o mundo, mas não pode ser escudo que oculte um coração mirrado ou a prepotência de tantos. A substância sobre a forma, sempre. Se qualquer um de nós tiver de escolher outrem para trabalhar ou para um qualquer tipo de relação – seja Papa, ou uma mulher ou homem “comuns” –, por certo prefere alguém que tenha espaço para aprender, eventualmente menos preparado do prisma técnico, mas que consideramos “boa pessoa”. Os crápulas serão sempre crápulas e um trabalhador que ainda tem de aprender, dali a algum tempo, é alguém competente e um bom ser humano. É isso que engrandece qualquer CV.