O canibal e outros holocaustos na Boca do Inferno do Indie

Na secção dedicada aos filmes fora de gavetas, o IndieLisboa mostra um espantoso documentário sobre canibais, mais ficções de polícias, ladrões e lobisomens. E são todos bons.

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Caniba, de Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor
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As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra
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La Nuit a dévoré le monde, de Dominique Rocher

Andamos todos vidrados a ver histórias de zombies (a culpa é de The Walking Dead), mas vamos ser honestos: como seria efectivamente recorrer ao canibalismo por desejo e não por necessidade? Vejamos o caso de Issei Sagawa, o infame canibal japonês, que em 1981, enquanto estudava literatura na Sorbonne, matou e comeu uma colega de estudos, tal como contado em Caniba, que o IndieLisboa mostrou em primeira passagem ao mesmo tempo que decorria a sessão oficial de abertura.

E o que se descobre – ou antes: o que Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor, os cineastas e mentores do Sensory Ethnography Lab de Harvard e vencedores do Indie em 2013 com Leviathan, descobrem – é um ser humano com um irmão de quem gosta e que toma conta dele. Um idoso que, apesar de ter nascido prematuro e doente, teve uma infância normal, gosta de chocolate, peluches e Walt Disney. E que também desenhou uma BD fetichista hiper-violenta sobre o seu episódio canibal, ao ponto de o próprio irmão dizer que não consegue continuar a lê-la (mas ainda folheia umas quantas páginas antes de pousar o livro…). Não que o irmão possa falar muito, pois ele também se entrega a jogos de prazer masoquistas com objectos cortantes e o braço direito.

Tudo isto parece extremista, quase repugnante. Mas, à imagem do que fizeram no anterior Somniloquies (que esteve a concurso no Indie em 2017), Paravel e Castaing-Taylor mergulham numa investigação táctil das pulsões humanas, numa tentativa de compreender sem julgar. Somniloquies era um objecto narcoléptico, à volta do poder estranho dos sonhos e de corpos em repouso filmados de modo abstracto, com tanto de instalação artística como de filme.

Caniba é mais tradicionalmente formatado como um documentário (até no modo como insere imagens de arquivo), mas prossegue esse olhar focado na investigação das pulsões e dos instintos inconscientes, vestígios de um cérebro reptiliano que julgamos ter deixado para trás mas, vai-se a ver, continuam presentes. Paravel e Castaing-Taylor exploram aqui uma espécie de antropologia do fetichismo e do tabu (ou não tivesse o Sensory Ethnography Lab começado como um centro multimédia de antropologia e etnografia contemporâneas), usando o que está fora das margens como objecto de estudo que possa explicar o que se passa cá dentro. Sem medos, nem tabus, e explorando toda uma série de dicotomias: bem/mal, sociedade/indivíduo, padrão/desvio, loucura/sensatez. Afinal, quem é o mais louco, o que esconde ou o que admite?

À atenção dos estômagos mais fortes, Caniba repete segunda (30) às 22h30 no Ideal, no âmbito da secção Boca do Inferno, onde o IndieLisboa “arruma”, sempre a horas nocturnas, obras que escapam a gavetas tradicionais. Não só canibais, mas também lobijovens brasileiros rurais em São Paulo no espantoso As Boas Maneiras, o delirante conto de fadas gore entre Tourneur, Disney e Saci Pererê com que a dupla brasileira Juliana Rojas/Marco Dutra venceu o Prémio Especial do Júri em Locarno; zombies parisienses em La Nuit a dévoré le monde de Dominique Rocher; ou criminosos desastrados e desesperados noutro filme de dupla, Laissez bronzer les cadavres, dos franceses Hélène Cattet e Bruno Forzani.

O primeiro chega à estreia portuguesa já na próxima quinta-feira (3), altura em que mais falaremos dele, mas passa antes disso numa sessão especial no Capitólio, segunda (30) às 21h15, em presença de Juliana Rojas e da actriz portuguesa Isabel Zuáa. Já Laissez bronzer les cadavres (duas exibições no Ideal: dia 28, às 22h30, e  dia 5, às 23h45) é um delirante manifesto de fetichismo formal do cinema popular italiano, uma espécie de giallo-spaghetti abstracto, estilizado e desconstruído que se esgota no pastiche reverente, ao mesmo tempo que faz as delícias dos apreciadores e abre o apetite para ir descobrir os prazeres culpados do cinema europeu de género. Talvez não seja esta a ideia que as pessoas fazem do IndieLisboa, mas tendo em conta que alguns dos melhores filmes que temos visto partilham desta recusa em encaixar numa gaveta, é boa ideia estar atento.

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