O que estes filmes têm em comum é nada terem em comum
Dificilmente se poderia imaginar uma selecção mais heteróclita. Os cinco filmes da Competição Nacional de Longas-Metragens do Indielisboa cavam personalidades artísticas singulares. A abertura do festival faz-se com um deles: A Árvore, de André Gil Mata.
Tendo em conta todos os factores, dos mais macroscópicos (as perenes debilidades estruturais do país) aos mais específicos do sector (a instabilidade e o sobressalto permanentes), não deixa de ser espantosa a vitalidade do cinema português. Não é dizer que todos os filmes que se fazem são igualmente relevantes, ou que todos os cineastas em actividade são igualmente bons. É dizer que o domínio do cinema em Portugal revela uma produtividade assinalável, que se fazem muitos filmes das mais variadas formas e feitios, e que essa quantidade não é absolutamente nada monolítica, revelando e contendo uma impressionante diversidade de personalidades, estilos, preocupações, ideias de cinema.
Serve o sumário parágrafo acima para nos introduzir aos cinco filmes que compõem a Competição Nacional de longas-metragens do IndieLisboa. Primeiro, porque a ideia de que um festival possa apresentar cinco longas-metragens portuguesas e com isso fazer um resumo da produção do ano já não é deste tempo – há sempre mais filmes, nenhum festival tem neste momento a possibilidade de conter "todo" o cinema português (o que não menoriza festival algum, antes reitera o que dissemos a abrir). Depois, porque dificilmente se poderia imaginar uma selecção (e a diversidade e a profusão reforçam a importância dessa palavra, "selecção") mais heteróclita, à base de filmes absolutamente diferenciados uns dos outros. É quase como um paradoxo, mas é assim: o que estes cinco filmes têm em comum é nada terem em comum, cavarem personalidades artísticas singulares, trabalharem sobre blocos "espácio-temporais" (antes de questões propriamente "temáticas") totalmente distintos uns dos outros.
Sente-se isso – a questão do "bloco espácio-temporal" – com bastante intensidade no filme escolhido para a abertura do festival, A Árvore, de André Gil Mata (dia 26, 21h, São Jorge, e dia 29, 19h, Culturgest). Estamos longe de Portugal, algures num lugarejo da Bósnia, entre aldeias e florestas, num tempo indefinido entre uma guerra e um pós-guerra, ou que assim parece. Até aos últimos minutos não há qualquer diálogo, e todo o filme repousa numa ideia de mise en scène profundamente física, fundada no encontro entre o movimento da câmara e o movimento dos actores – como no plano-sequência de abertura, longuíssimo e mobilíssmo, a passar do particular ao geral e do geral ao particular, do zoom à fixidez e da fixidez ao travelling, da imobilidade ao esforço físico (um homem cruza as ruas da aldeia transportando às costas uma vara carregada de garrafões de vidro que tilintam, e tilintam, e tilintam). Há uma lembrança imediata, e nem é preciso saber que André Gil Mata frequentou há pouco tempo a escola de cinema que Béla Tarr montou em Sarajevo: A Árvore é um filme completamente "tarr-eano", que no seu tratamento dos movimentos desenhados pela câmara, na sua conciliação de um realismo muito físico e da estilização do olhar que o enquadra (o que inclui a fotografia, notável trabalho de João Ribeiro, a usar cor e a iluminação como elementos "desnaturalizadores", gotas de artifício a cobrirem o princípio fundamentalmente realista da "acção"), lembra constantemente o cinema do realizador húngaro, da coreografias de Perdição ao vai e vem entre a casa e o poço do Cavalo de Turim. E isso, ser tão evidentemente um exercício "sob influência", é ao mesmo tempo a força e ao limite do filme: porque, como tal, é bem sucedido (e tem momentos deveras impressionantes), e porque também não encontra a forma (ou disso não tem vontade) de sacudir o modelo, de o deixar para trás. Talvez num próximo filme? Gil Mata tem experimentado formas diferentes de filme para filme, como se à procura de um caminho – o seu – para algum lugar. Há uma sensação de convicção em A Árvore que sugere que talvez o tenha encontrado, ficamos curiosos para a sequência que futuramente lhe venha a dar.
Universos geograficamente estranhos (a Portugal) são também os de João Viana. Our Madness, a "nossa loucura" (dia 29, 21h30, Culturgest e dia 3, 18h45, São Jorge) prossegue a sua investigação de histórias (ou História) e mitologia africanas que já se vira em A Batalha de Tabatô. Para melhor, porque o filme representa um salto considerável, na complexidade da sua estrutura como no poder sugestivo das imagens. Com centro num manicómio moçambicano, e uma porção de personagens "em transe", semi-"zombificadas" duma maneira que em certos momentos traz à memória a Casa de Lava de Pedro Costa, Our Madness relata uma demanda (a protagonista que procura o marido, presumivelmente mortos ou desaparecidos na guerra), ao mesmo tempo física (isto é, desenvolvida no espaço) e mental (isto é, remetida ao domínio da fantasia e das recordações). Ecos históricos, não apenas de Moçambique mas de uma "história geral" da África colonial, casam com o folclore e a mitologia "fantasmática", num filme que propõe um retrato dilacerado de todo um continente: quando o preto e branco da fotografia aparece tintado a vermelho, essa cor de sangue tem um duplo sentido simbólico, é "vida" tanto como é sinal de morte.
Mais próxima "daqui" está Susana Nobre, que apresenta o seu Tempo Comum (27, 21h30, Culturgest, dia 1, 19h, São Jorge, e dia 6, 16h, São Jorge), primeira experiência ficcional de uma realizadora que assinou óptimos documentários como O Que Pode um Rosto ou Vida Activa (sendo que este último foi passo importante na genealogia de Fábrica de Nada, filme que em Susana, habitualmente ligada à Terratreme, também esteve envolvida). Mas convém não destacar muito o carácter ficcional de Tempo Comum, porque funciona segundo um princípio que já víramos na produção documental da realizadora: ser uma espécie de "contentor", de "arquivo" de experiências de vida. E assim, tão importante como a descrição minuciosa da vida de um casal a aprender a viver com um bebé é a quantidade de "depoimentos" que as outras personagens trazem, inscrevendo no filme uma autenticidade ligada uma vivência ao mesmo tempo muito concreta e muito genérica (Portugal, nos últimos anos, e para além ou para aquém das "crises"). Chega-se a uma ideia, dada com força e subtileza, de comunidade, como se fosse esse o sentido da presença no título da palavra "comum"
Em Mariphasa (30, 21h30, Culturgest, e 5, 16h15, São Jorge), segunda longa de Sandro Aguilar (quase dez anos depois da primeira, a A Zona), estamos como é habitual no realizador num universo que parece ao mesmo tempo muito reconhecível e muito distante, ser "este" mundo (ou este país) ao mesmo tempo que é a sua transfiguração operada sem chaves evidentes, ou pelo menos dadas de barato. Sandro Aguilar narra por fragmentos, fragmentos de histórias que se cruzam em ligações que quase sempre ficam ao cuidado da imaginação do espectador (é por isso que surge a tentação da palavra "cerebral": o cineasta quer um espectador que mantenha o cérebro ligado, um espectador que "trabalhe"), num ambiente tendencialmente nocturno que se divide entre o reduto doméstico (um casal em luto, um vizinho misterioso) e o espaço industrial de uma fábrica. Em simultâneo "materialista", porque tudo está no rigor da composição dos planos e na intrincada teia sonora que os envolve, e "abstracto", porque há sempre um tom, chamemos-lhe "místico" (aqui representado pela planta que dá título ao filme), a pairar sobre as situações e as personagens, Mariphasa reitera a ideia de que Sandro Aguilar é o mais "nórdico" dos realizadores portugueses (é do cinema "metafísico" do norte e do leste da Europa, dos anos 60 e dos anos 70, que "Mariphasa" mais nos faz lembrar.
Se todos estes filmes são reencontros com cineastas, que continuam a trilhar os caminhos que as suas obras já abriram, a descoberta é Bostofrio (28, 18h30, Culturgest, e 4, 21h30, São Jorge), estreia de Paulo Carneiro (também presente em Our Madness, onde é creditado como assistente de realização). Bostofrio é uma singularíssima declinação do modelo do documentário de família. Na aldeia de Bostofrio, em Trás-os-Montes, o realizador (que está quase sempre dentro dos planos) procura chegar a um retrato do avô, que não conheceu e que nunca perfilhou o seu pai, perguntando, ouvindo e puxando pelas memórias dos seus conterrâneos. Essa personagem "ausente", o avô, nunca se materializa – não é um filme "sobre o avô", é um filme sobre um homem à procura de uma imagem para o seu avô (imagem, literalmente, como a questão das fotografias, que o filme acaba sem mostrar, comprova). O que fica, contudo, é muito mais do que a questão pessoal: aos poucos, através da crucial questão dos filhos "ilegítimos", vai-se desvelando a dinâmica social da aldeia, até mesmo, porque não?, a dinâmica sexual da aldeia. Carneiro injecta uma energia especial às cenas de diálogo: por norma as pessoas conversam enquanto trabalham (nos campos, nos currais), outras vezes as personagens em diálogo desaparecem por trás do arvoredo ou de um muro (e ficamos ali, hipnotizados por planos fixos e "vazios". Podia-se chamar Onde Fica a Casa do Meu Avô?, porque a influência de Kiarostami é a vários níveis detectável (até formalmente, como no notável ultimo plano, um travelling de automóvel). Outras vezes Carneiro lembra-se de coisas tão insólitas, na maneira como abanam o registo do filme, que ele viu bem o seu Manoel de Oliveira (aquele ruido vindo do nada que precede os planos do incêndio na planície faz lembrar os planos "apocalípticos" do Acto da Primavera). Tudo se conclui com uma citação de Teixeira de Pascoaes: "Deus e o Diabo são incompatíveis em toda a parte, menos em Portugal". Mais do que justo no contexto do filme, deixa-nos a pensar: se calhar esse aforismo de Pascoaes é o grande tema de todo o cinema português.