Julgamentos virtuais nas televisões
O que foi mostrado nas televisões é totalmente irrelevante para a prova da culpa ou da inocência de quem quer que seja.
A recente exibição televisiva de vídeos de interrogatórios de arguidos e testemunhas em processos em curso tem sido objecto de muitas críticas. O Ministério Público abriu inquérito para apurar responsabilidades. A Associação dos Juízes qualificou-a de lamentável e deplorável. A Ordem dos Advogados disse que ela abala os fundamentos do Estado de direito democrático. O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas afirmou que se trata de uma devassa sobre a vida dos arguidos. Este coro de críticas mostra que o assunto é sério.
Como juiz, por dever de reserva, não me cabe dar palpites jurídicos sobre se há ou não há crime. Interessa-me analisar o problema de outro ângulo.
Em defesa da exibição dos vídeos, argumenta-se com o interesse público da fiscalização democrática da acção da Justiça, por estarem envolvidas pessoas que exerceram relevantes funções públicas. Este argumento pressupõe que cabe ao jornalismo definir os casos em que o exercício da liberdade de informação pode sobrepor-se a outros valores fundamentais. Mas não é assim. Nas sociedades democráticas, é a lei que define os direitos e a sua hierarquia e são os tribunais que asseguram o seu exercício. Para além disso, a validade do argumento seria sempre limitada, visto que foram também exibidos interrogatórios de pessoas que não são arguidos ou que nunca exerceram funções públicas que pudessem justificar, de alguma maneira, a compressão dos seus direitos.
Então por que é que a exibição daqueles vídeos é errada?
Em primeiro lugar, é errada porque os valores que estão do outro lado da liberdade de informar não são menos relevantes. Para além da garantia dos direitos fundamentais dos arguidos à dignidade e à presunção de inocência, está em causa, também, a boa administração da Justiça, que sai prejudicada quanto há pressões externas ao processo a condicionar a isenção e independência do julgamento.
Em segundo lugar, é errada porque a encenação audiovisual feita à volta de interrogatórios de arguidos e testemunhas em posição de fragilidade distorce a percepção da opinião pública sobre o valor probatório das suas declarações e confunde no mesmo plano a “verdade jornalística” e a “verdade judicial”. Os juízes não analisam as provas pela televisão, com locução e efeitos especiais de imagem e som, inseridas em narrativas sincopadas dos factos. As regras em tribunal são outras. Desde logo, não se sabe se aqueles interrogatórios podem vir a ser usados como prova em julgamento. Depois, o apuramento dos factos não se faz com pedaços de prova. Faz-se com base numa ponderação global e conjugada, sujeita a um contraditório pleno entre a acusação e a defesa.
A exibição dos vídeos é errada, ainda, porque fragiliza o princípio essencial do Estado de direito democrático de que a Lei é igual para todos. Se exigimos – e bem – que todas as pessoas suspeitas de crimes sejam investigadas, independentemente da sua notoriedade pública ou dos cargos que ocupam ou ocuparam, temos de garantir, em contrapartida, que os direitos fundamentais dessas pessoas são respeitados, como os de quaisquer outras.
Por fim, é errada porque permite a construção de mil teorias especulativas sobre o que aconteceu.
Uns dirão que a prova da acusação é fraca e que por isso a divulgação dos vídeos interessa às autoridades judiciárias para influenciar o julgamento “por fora”. Outros dirão que a prova é forte e que a exibição dos vídeos serve os propósitos de quem possa querer apostar na vitimização dos arguidos ou na politização do processo. Ou então, dirão outros ainda, foram os jornalistas assistentes no processo que, abusando dessa qualidade, tiveram acesso legítimo às gravações e resolveram divulgá-las. Não sabemos, mas todas as possibilidades são más.
O que foi mostrado nas televisões é totalmente irrelevante para a prova da culpa ou da inocência de quem quer que seja. Se alguém tiver de ser condenado ou absolvido, há-de ser em tribunal, por juízes imparciais, de acordo com as regras do processo justo e equitativo. Tudo o que possa sugerir o contrário, que se desenrolam em paralelo um julgamento no tribunal e outro nas televisões, choca o bom senso jurídico e social. E por isso não pode estar certo.