Falemos, então, das imagens da SIC
Se interiorizássemos que cada um daqueles homens é suspeito de ter roubado não o Estado, mas cada um de nós, seríamos certamente muito mais tolerantes em relação àquelas reportagens e muito menos tolerantes em relação à corrupção.
Pode uma sociedade ser em simultâneo profundamente dependente do Estado e profundamente desconfiada do Estado? Pode, claro – a sociedade portuguesa não é outra coisa senão isso. Uma das consequências dessa postura é esta: num país onde toda a gente sente que a corrupção é um mal muito entranhado e muitíssimo mal combatido, são realmente poucos os que estão dispostos a assumir as consequências do seu combate, para além das indignações episódicas em conversas de café e nas redes sociais.
Sim, a corrupção é terrível, mas o enriquecimento ilícito inverte o ónus da prova. Sim, a corrupção é horrível, mas a delação premiada é uma deriva pidesca. Sim, a corrupção é detestável, mas prender alguém antes do trânsito em julgado da sentença é uma barbaridade. Sim, a corrupção é lamentável, mas onde é que já se viu expor interrogatórios de arguidos na televisão? Sim, a corrupção é a pior coisa do mundo – excepto quando tentamos encontrar formas eficazes de a combater, porque todas elas ainda são piores do que a corrupção.
Esta atitude deriva de uma profunda incapacidade em colocar o interesse colectivo acima do interesse individual. Sei bem os perigos que este argumento encerra: a PIDE queria proteger os interesses da nação e a Inquisição jurava proteger o bem comum da fé – e olhem no que deu. Certo. Mas a balança tem de estar minimamente equilibrada, senão caímos na absoluta impunidade: um país incapaz de condenar corruptos, ou sequer de prendê-los em tempo útil já depois de condenados, de tal forma é garantista o nosso sistema judicial.
Quando olhamos para as reportagens da SIC, onde são expostas pessoas a serem interrogadas, eu não tenho dúvidas de que essa opção atenta contra os interesses daqueles indivíduos. A questão está em saber se o interesse colectivo o justifica. Que aquelas reportagens acrescentaram muito à informação disponível na sociedade portuguesa não me parece que haja dúvidas. É verdade que pessoas extremamente bem informadas conheciam tudo aquilo. Mas sejamos sérios: quem é que em Portugal lê diariamente o PÚBLICO, o Correio da Manhã, o i, o Observador, a Sábado, a Visão, o Expresso e o Sol, para ter a informação completa sobre a Operação Marquês? Eu digo-vos quem: pessoas como eu, que fazem disso profissão.
O trabalho da SIC teve, pois, o mérito de unir todas as pontas, de uma forma muito compreensível para o grande público. Mais: a voz e postura corporal dos arguidos são elementos fundamentais para a formação de uma convicção. Tenho dúvidas sobre certas opções tomadas – penso, em particular, que testemunhas e arguidos não deveriam ser tratados da mesma forma, e acho essencial todos serem informados de que estão a ser filmados –, mas não alinho no desprezo acerca da importância que aquelas imagens têm para o esclarecimento da opinião pública quando estão em causa crimes de corrupção.
E deixem-me voltar a repetir estas três palavras: crimes de corrupção. A lei permite que qualquer pessoa seja constituída assistente em processos envolvendo crimes cometidos no exercício de funções públicas – e permite muito bem, na medida em que todos nós somos vítimas. Infelizmente, nós próprios, as vítimas, tendemo-nos a esquecer disso. A corrupção não é uma coisa lá deles – é connosco. Se interiorizássemos que cada um daqueles homens é suspeito de ter roubado não o Estado, mas cada um de nós, seríamos certamente muito mais tolerantes em relação àquelas reportagens e muito menos tolerantes em relação à corrupção.