Manifesto “Liberdade e pensamento crítico”
A liberdade povoa todos os espaços da vida; não pode ter quartos escuros nem armários fechados.
O sentido da liberdade vai mudando ao longo do tempo e varia de contexto para contexto. São vários os significados que lhe podemos atribuir, mas todos têm algo em comum: quem luta pela liberdade fá-lo na condição de oprimido e aspira a ser mais feliz, tanto nos espaços públicos como nos espaços privados da intimidade. Que dessa luta fiquem marcas, que alimentem novas ações em prol da liberdade, pois esta é frágil e nunca está garantida.
Nós temos memória do passado e estamos vivos. Podemos ainda narrar o que era a vida dos pobres, dos que queriam liberdade de pensamento e dos que lutavam contra a ditadura no nosso país. Mas a memória não chega. A memória é fragmentada, subjetiva e muitas vezes romântica. Queremos estar no presente e no futuro, num mundo em mudança, com imprevistos e surpresas, mas também com escolhas.
A vida de uma pessoa, entre milhões de humanos, impõe a todos e todas regras de interação social. No entanto, há regras que nos são impostas sem que cada um participe no processo da sua elaboração e que limitam a nossa liberdade física, a sobrevivência, o desenvolvimento e a ação, e a nossa liberdade mental. Disse Goethe: “Ninguém é mais escravo do que aquele que se julga livre sem o ser.”
Há milhões de pessoas que nascem e morrem sem nunca terem sido felizes, porque é impossível sê-lo nas condições em que vivem. As crianças que nascem na pobreza têm fome pela escassez de alimentos ou da sua qualidade. O acesso à chamada solidariedade é sentido desde a infância como um estigma e a desigualdade com os outros da mesma idade não é percetível por qualquer racionalidade, o que leva à revolta e à tristeza. As situações de desemprego, a precariedade, as pensões de miséria, os idosos dependentes e os incapacitados geram um ambiente que dura vidas inteiras, sem uma abertura, sem um pequeno projeto de alegria. Também nas chamadas classes médias a vida é desumana. O trabalho humano tornou-se mercadoria e o critério de produtividade dos acionistas das empresas cabe num programa de computador. As oito horas de trabalho, que a tantas condenações à morte levou em 1886, foram esquecidas e as empresas privadas alargam com ameaças a jornada de trabalho às dez, 12 horas. Esta é a realidade que impede uma vida pessoal condigna. Ora, os computadores têm que ser postos ao serviço do ser humano e não este ao serviço dos computadores. O tempo de trabalho deve diminuir.
Com efeito, a estrutura económica que condicionou a organização social e individual apresenta-se como natural. A ideia de que a sociedade é a soma de indivíduos isolados e competitivos leva à culpabilização individual das pessoas e oculta a organização social que nos é imposta e nos torna cada vez menos livres e capazes de cooperação. O discurso dominante muitas vezes refere o problema da natalidade e a questão da insustentabilidade demográfica do nosso país. Fá-lo para justificar as restrições nas áreas sociais do Estado, mas, sobretudo, para esconder a limitação da liberdade de procriação que a organização social gera. Se é verdade que o direito à saúde sexual e reprodutiva foi um avanço no processo de emancipação das mulheres, não é menos verdade que esse direito lhes está a ser sonegado. As mulheres desapossadas e até mesmo as das chamadas classes médias não estão verdadeiramente livres para escolher ter filhos.
Os espaços de intimidade são tão opressivos, produtores de desigualdades sociais e limitadores da liberdade como os espaços públicos. Ao serem representados como “espaços privados” permitem-lhes ocultar as teias invisíveis de uma opressão, silenciosa, resultante de relações de poder reproduzidas ao longo do tempo. Poder que está presente, por exemplo, na violência contra as mulheres e na manutenção da sua invisibilidade social, nas relações parentais e na discriminação e estigmatização de pessoas em função da sua orientação sexual. Desocultar tais opressões, trazendo-as para discussão pública e combatendo-as a partir da assunção dos Direitos Humanos, é um ato de coragem, de todas e todos, no sentido da construção de uma sociedade mais justa e livre.
As pessoas só poderão aspirar à felicidade se o planeta for habitável. Ora a lógica do lucro, que é a lógica do mundo em que vivemos, está a pôr em causa a vida na terra. A estrutura económica fundada nos produtores de armas que não abdicam das matanças locais e mundiais, na lógica da exploração e uso dos combustíveis, na produção de alimentos que não correspondem às necessidades e estão contaminados por produtos suspeitos, está numa marcha que precisa ser travada para além dos discursos.
A nossa liberdade começa com a liberdade de outros.
A liberdade povoa todos os espaços da vida; não pode ter quartos escuros nem armários fechados.
A liberdade não deve permitir que as diferenças sejam hierarquizadas em relações de poder.
A liberdade só existe quando se exerce contínua e diariamente, em cada gesto, em cada ideia, em cada sentimento.
A liberdade é o direito à igualdade com o reconhecimento da diferença.
Afonso Dias, Amândio Silva, Camilo Mortágua, Carlos Cruz, Fernanda Oliveira, Francisco Fanhais, Guadalupe Magalhães, Isabel do Carmo, Jacinto Almeida, João Vaz, Joaquim Alberto Simões, Luís Vaz, Manuel Lisboa, Mário Moutinho, Rafael dos Santos, Teresa Rodrigues Gago (a subscrever por quem quiser contactar os autores)
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico?