O 25 de Abril foi a uma quinta-feira

E se há muito esperava por esta madrugada, este dia inicial inteiro e limpo, não podia imaginar, ou sonhar, o que iria acontecer

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Paulo Pimenta

Estava em casa, em Lisboa, o sol brilhava e a temperatura era amena. Era Abril. Daí a poucos dias faria 26 anos e, por norma, está sol no meu dia de anos. O teu pai tinha três anos e, tal como hoje, não fazia ideia do que se estava a passar. Mas não faz mal, eu fazia enquanto lhe ensinava o garfo à direita e a faca à esquerda. Morávamos no bairro social da Musgueira numa casa com um quarto, eu, o teu pai, o teu avô e o teu bisavô, não havia telefone mas tínhamos uma pia e chaminé, um luxo, imagina, para quem tivera de partir do Gavião à procura de melhor, mas nem por isso, ainda não, talvez melhor fosse ficar, não partir, não chegar, não morrer.

E se há muito esperava por esta madrugada, este dia inicial inteiro e limpo, não podia imaginar, ou sonhar, o que iria acontecer. Passei o dia todo colada ao rádio, de lágrimas nos olhos entre a esperança e a dúvida, com o coração apertado de tanta emoção.

À medida que os acontecimentos se desenrolavam, não podia deixar de rever a minha curta vida até então: os meus 40 colegas de turma (duas turmas separadas de rapazes e raparigas) que ao acabar a 4.ª classe não puderam continuar a estudar por falta de condições, tendo todos de trabalhar para comer, para viver, para sobreviver, nós e a família de cada um por inteiro, nunca menos de quatro irmãos e irmãs e um sem número de tios, tias e primos; a vida miserável na aldeia e a dependência total e absoluta dos favores do senhor padre e mais dois ou três senhores que ajudavam as pessoas no hospital, nas finanças, na câmara, porque ninguém sabia ler, os nossos pais não sabiam ler, os nossos avós também não, o teu bisavô também não; a fuga de novos e velhos a salto para França sob risco de uma bala ou a prisão, os mais novos a fugir à guerra colonial e à fome e as mães e as namoradas de joelhos, a desesperar em casa, a desesperar na terra, os mais velhos à procura de sustento para tantos filhos.

E porque as paredes tinham ouvidos, porque a PIDE tinha ouvidos e os vizinhos tinham ouvidos, o medo, o medo de falar, o medo de respirar, o medo de pensar, o medo de ouvir, sair, andar, beijar, comer, falar, ver, viver, acordar, dormir, sempre o medo de cabeça baixa na rua para quem passa, ou à hora do jantar à mesa dentro da própria casa, não vá um dedo apontar, não vá o dedo disparar.

Éramos presos como cães e sentimos todo o horror nas mãos, na boca, nos dentes, a cuspir os dentes à força dos murros de uma polícia sem critérios, só força, a brutalidade, repressão, o teu avô no Aljube, a cela de metro e meio, uma vida, a nossa, num metro e meio. No dia 25 de Abril não saí de casa, mas o teu bisavô saiu, de madrugada, para comprar frutas e hortaliças, e, emocionado, assistiu à movimentação das tropas na Praça do Comércio.

No dia 25 de Abril não saí de casa, não saímos de casa, mas a 26 saímos, e a 27 também, sem esquecer o 1 de Maio e o povo saiu à rua, para não mais ficar em casa, para não mais ter medo, para sempre em liberdade.

O 25 de Abril foi a uma quinta-feira. Podia ter sido em qualquer outro dia, mas não foi, foi a uma quinta-feira, eu sei porque eu vivi o 25 de Abril, o Marcello Caetano preso pelos militares, as pessoas tão incrédulas, as pessoas tão felizes, finalmente podiam viver, finalmente podiam falar, e gritar, depois de 48 anos de prisões, tortura, morte, guerra, fome, ditadura, o Inverno morreu por fim, o inferno morreu por fim nos cravos de Abril, na Primavera de Abril.

Viva o 25 de Abril!

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