O Mercado do Bolhão e o desprezo oficial pelo património

Temos ainda poucos dias para ver o que resta de um património único da cidade que a câmara se prepara para destruir.

Quem passa pelo Bolhão este mês vê as lojas exteriores praticamente vazias e no interior uma série de caixotes de plástico empilhados cuidadosamente com os dizeres "mercado temporário do Bolhão". Parece assim que se torna finalmente real a obra planeada durante décadas. Dizem-nos que é para Maio. Temos então ainda poucos dias para ver o que resta de um património único da cidade que a câmara se prepara para destruir, ao mesmo tempo que publicita a sua reabilitação.

O interior do mercado do Bolhão no Porto é constituído por pequenos pavilhões de venda, desenhados de raiz na década de 1910 e atribuídos a Teixeira Lopes, um dos mais importantes arquitectos da sua geração. Foram baptizados de "barracas" mas o nome peca por excesso de modéstia. As "barracas" existem em quatro tipologias e tamanhos diferentes, e dispõem-se de forma cuidadosamente planeada no terrado do mercado. A sua linguagem arquitectónica é, à sua escala, comparável em erudição à do próprio exterior do mercado. Conjuga pormenores da arquitectura tradicional portuguesa, como os beirados e os azulejos, com os telhados de ardósia de inspiração francesa; caixilharias de guilhotina, tipicamente inglesas ou holandesas, dispostas de modo fortemente original e por vezes de configuração neo-gótica; colunatas e arcos que, especialmente nos pavilhões abertos, adquirem uma monumentalidade clássica pouco comum, e comparável por exemplo ao mercado de Covent Garden, em Londres.

Aparte a análise académica, os pavilhões do Bolhão são também especiais porque criam ruas bem definidas dentro do próprio mercado, com uma pequena praça interior coberta pelo passadiço de 1940 (que também será demolido). A experiência de ir ao Bolhão é única também por isso: um misto de bazaar oriental e arquitectura ecléctica Beaux-Arts. Os arcos apontados das janelas encerram potes com especiarias, mas a venda é feita na rua, que na verdade é um cenário cuidadosamente desenhado e planeado.

Tudo isto foi desprezado pela câmara, responsável pelo projecto, que foi incapaz de ver nos magníficos pavilhões mais do que o abandono a que gerações sucessivas de poder local os deixou. O projecto que apresentam como "conservador" vai destruir tudo isto e substituí-lo por uma estrutura nova em aço e vidro, que poderia estar em qualquer lugar. Houve uma petição para o impedir. Em reunião de câmara, há dois ou três anos, apresentámo-la e foi-nos dito pelos responsáveis que os pavilhões eram "palheiros" e que "se todos pensassem desta forma nunca se tinha construído a ponte D. Luís".

Esta forma de raciocínio primário está explicada clarissimamente no texto recente de Bárbara Reis no PÚBLICO, "Velas ou Luz eléctrica". É a falácia do progresso. Como exemplo, outro dos argumentos oficiais para a demolição dos pavilhões é a sua suposta inadequação aos padrões higiénicos actuais. É fácil dizer isto: os pavilhões estão degradados, e é difícil imaginá-los em boas condições. Mas obviamente reabilitar o património não implica viver como há cem anos atrás. Os actuais toldos de plástico podem ser substituídos por uma solução permanente e digna; os pavilhões podem receber infra-estruturas novas, bancas uniformizadas, climatização interior; todos os bastidores de câmaras frigoríficas e armazéns podem ser igualmente construídos. Não são as Barracas do Bolhão que impedem que o mercado funcione em pleno, antes dão-lhe a graça e originalidade que o tornam numa obra única.

Como no Bolhão, é este o status quo actual da grande reabilitação urbana no Porto: edifícios e até quarteirões emblemáticos da cidade são esventrados com a fachada deixada porque tem de ser, e acabados com janelas de plástico e mansardas em zinco para acrescentar um ou dois pisos. É efectivamente obra nova por cima da cidade histórica, sem apelo nem agravo. A reabilitação urbana está assim efectivamente confinada às obras de pequenos privados com alguma consciência e sensibilidade.

Há cinco anos, o Porto ainda era uma cidade rica em património – os anos de rendas controladas e da crise tiveram o efeito menos mau de nos deixar uma cidade histórica preservada de forma autêntica, raridade na Europa Ocidental. O controlo estrito sobre a construção na Baixa e centro histórico poderia ter conjugado facilmente soluções de conforto actual com a preservação da cidade tradicional. Infelizmente, esse controlo estrito ou nunca aconteceu ou desapareceu e hoje em dia a autenticidade do Porto está-se a destruir a um ritmo exponencial.

Quando é a própria câmara a promover essa destruição como no caso do Bolhão, as perspectivas não são optimistas. Caberá aos portuenses julgar – mas, principalmente e pior, arcar com as consequências.

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