Depositar o arquivo de Riefenstahl no Museu de Fotografia de Berlim é uma afronta às vítimas do nazismo?
Decisão criticada por associar o espólio da realizadora predilecta de Hitler ao do fotógrafo judeu Helmut Newton, e também por eventualmente poder alimentar a vaga de neonazismo na Alemanha.
A decisão tinha já sido anunciada no passado mês de Fevereiro: o espólio de Leni Riefenstahl (1902-2003), a realizadora alemã predilecta de Adolf Hitler e que com os seus filmes O Triunfo da Vontade (1934) e Olímpia (1938) ajudara à propaganda do ideário nazi, foi doado à Fundação Prussiana do Património Cultural, em Berlim, por iniciativa da antiga secretária e herdeira da cineasta, Gisela Jahn.
Trata-se de um vasto conjunto de caixas com rolos de filmes desde os anos 20, mas também com fotografias, cartas e outros documentos, além ainda de fatos de mergulho e vestidos usados por Riefenstahl, e que se encontrava guardado na sua casa nas margens do Lago Starnberg em Pöcking, na Baviera – onde permaneceram até à morte do viúvo da realizadora, Horst Kettner, em 2016.
Gisela Jahn, que herdou o espólio nesta altura, justificou a doação por esse ter sido um desejo expresso de Leni Riefenstahl.
A instituição depositária do espólio é o Museu de Fotografia de Berlim, que a repórter do jornal britânico The Guardian Kate Connoly foi agora visitar em busca de eventuais revelações sobre as relações da cineasta-fotógrafa com o regime nazi. Falou com o director do museu, Ludger Derenthal, e ficou a saber que nas múltiplas caixas de arquivo que guardam o espólio “há itens que ninguém jamais tinha visto, fora do círculo íntimo de Riefenstahl”. Mas Derenthal também explicou, mostrando uma pasta com “correspondência de H a Z”, que não fora aí encontrada “nenhuma carta de Adolf Hitler”.
A relação privilegiada de Riefenstahl com o ditador nazi tem vindo a ser repetidamente tema de controvérsia, e não deixou de acompanhar, de resto, a longa vida da realizadora após o final da guerra. A Justiça alemã chegou inclusivamente a abrir um inquérito à realizadora, na viragem do século, na sequência da acusação que contra ela foi interposta por um homem de etnia cigana sobre as circunstâncias da realização daquela que seria a sua última longa-metragem, Tiefland, cuja produção foi iniciada em 1934, mas que só viria a ser estreada em 1954.
Prisioneiros ciganos feitos figurantes
Tiefland, baseada na ópera homónima de Eugen d’Albert e Rudolph Lothar, foi rodada nos anos da guerra, entre 1940-44, e a realizadora utilizou como figurantes prisioneiros de etnia cigana requisitados em campos de concentração. Mas Riefenstahl sempre se defendeu dizendo não ter conhecimento da situação deles, e muito menos que eles teriam sido depois mortos nos campos de extermínio nazis.
Por falta de provas – mas também tendo em atenção a idade já então muito avançada da realizadora, crê-se –, a Justiça alemã suspendeu o inquérito em 2002.
O episódio vem agora de novo à luz do dia, como vem a eventual cumplicidade da autora de O Triunfo da Vontade com o regime nazi – algo que ela sempre negou, invocando total desconhecimento do que se passava no seu país.
“Uma equipa de especialistas em arquivos de língua alemã e de especialistas em Riefenstahl vai passar alguns dos próximos anos, em colaboração com o museu de fotografia, a cinemateca e a biblioteca nacional, a tentar reconstituir a vida de Riefenstahl, que sempre tentou defender a imagem de si mesma como uma naïf do ponto de vista político, que tinha sido apanhada acidentalmente pela máquina nazi”, escreve a repórter do Guardian.
Nina Gladitz, que acaba de publicar um livro sobre a realizadora, diz também a Kate Connolly que dificilmente se encontrarão testemunhos da sua verdadeira relação com o nazismo, porque Riefenstahl destruiu todas essas provas após 1945. E sobre o caso da rodagem de Tiefland, esta biógrafa lamenta que “o episódio tenha sido completamente ignorado pelos académicos e pelos historiadores do cinema”.
Amizade com Helmut Newton?
Além de temerem que o acolhimento e a mediatização do espólio de Riefenstahl possa vir a reforçar, na Alemanha, uma nova vaga de defensores do nazismo, uma outra razão motiva quem tem criticado a decisão do Museu de Fotografia de Berlim. É que este museu é o mesmo que, desde o ano da sua morte, acolhe o espólio do fotógrafo Helmut Newton (1920-2004), um judeu nascido em Berlim e que ainda jovem, em 1938, foi forçado a abandonar o seu país para escapar ao nazismo.
Brian Winston, professor de cinema na Universidade de Lincoln, disse-se “chocado” com a decisão, e considera “um absurdo e mesmo uma obscenidade que o espólio da cineasta favorita de Hitler receba um lar na fundação de um homem que foi forçado a fugir da Alemanha nazi porque era judeu”.
Ludger Derenthal justifica a decisão do museu com o conhecimento, testemunhado pela secretária Gisela Jahn, de que Riefenstahl e Newton se tinham tornado bons amigos, e que o fotógrafo a visitava na sua casa de Pöckink, além de trocarem correspondência.
Numa das notas encontradas nos arquivos da realizadora, Newton escreve: “Querida Leni, você parece fascinantemente glamourosa, e essas pernas!... A pobre Marlene [Dietrich] ficaria verde de inveja”.
Alguns vêem neste "piropo" um estratagema do fotógrafo para conseguir convencer a realizadora a deixar-se fotografar por ele, nos seus 100 anos, para a revista Vanity Fair. Mas há também quem veja nesse retrato histórico, com Leni a encher a cara de pó e com os olhos vazios, uma espécie de “vingança final de Newton sobre a grande dama nazi”.