A cozinha como arte (ou food porn de primeira)

Na série que David Gelb criou para a Netflix, a cozinha de autor é vista como uma arte, mas também para fazer um olhar sobre a personalidade e a história de vida de cada chef.

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Chef’s Table é a cozinha como arte e o chef como artista DR

Os programas de culinária existem não necessariamente para nos ensinar a cozinhar ou para nos mostrar como é que fazemos este ou aquele prato. Em muitos casos – e claramente no caso de Chef’s Table – existem apenas para nos deixar a babar com todos os pratos que nunca vamos conseguir fazer em casa, feitos pelos chefs de que todos os gastrónomos falam, mas que só uma rara elite de privilegiados, com paladares dispostos à aventura, conseguirão provar. Se quisermos: food porn de primeira água, filmado com todo o requinte estético de um documentário sobre artes plásticas – porque o que chefes como Niki Nakayama, Massimo Bottura, Grant Achatz ou Enrique Olvera fazem é pensar na comida como uma experiência artística.

O que é interessante na série que David Gelb criou para a Netflix é o modo como esse olhar sobre a cozinha de autor como uma arte é também um olhar sobre a personalidade e a história de vida de cada chefe – como, por exemplo, Alex Atala começou a integrar as tradições amazónicas na sua nova comida brasileira, ou como o cancro de Grant Achatz alterou a sua relação com as suas criações abstractas. E é isso que regressa, agora aplicado à doçaria, na 4.ª temporada de episódios que acaba de entrar em rotação no serviço (em termos práticos, é a quinta série, mas a produção optou por dar uma identidade separada à temporada dedicada a França). São apenas quatro episódios, mas entre eles está um dos mais extraordinários momentos da série – a hora dedicada ao catalão Jordi Roca, o mais jovem dos três irmãos do destino gastronómico que é El Celler de Can Roca, em Girona.

Nele, o criador David Gelb arranca um retrato notável de um “caçula” que andou perdido sem saber o que fazer até uma aprendizagem com o chef de pastelaria do restaurante lhe abrir portas e lhe permitir encontrar o seu lugar na família. Não interessa tanto se as suas sobremesas mágicas (cujos ingredientes incluem, por exemplo, aroma de terra fresca…) são acessíveis ou não; o que interessa é o modo como elas reflectem uma aprendizagem da vida e um olhar para o mundo. Tal como a panna cotta feita com “leite de cereais” – o leite que fica depois de comermos uma tigela de corn flakes – ou a tarte de açúcar e ovos improvisada sem ingredientes que resultou tão bem que ficou conhecida como crack pie reflectem a vida da sua criadora, Christina Tosi. Ou como os cannoli e outros gelados caseiros do Caffè Sicilia de Corrado Assenzo reflectem um século de receitas passadas de mão em mão e actualizadas para os nossos dias.

Podíamos ir por aí fora, mas já perceberam certamente a ideia: Chef’s Table é a cozinha como arte e o chef como artista, e esta nova série de episódios sobre doçaria não fica em nada atrás das anteriores. É food porn de luxo, sim, e então? Afinal de contas, um bolinho de vez em quando não faz mal a ninguém. Mas só mesmo de vez em quando. E são só quatro episódios.

A temporada de doçaria de Chef’s Table – designada por “Volume 4” – está agora disponível no serviço de Netflix, a par dos “volumes” 1 a 3 e da temporada Chef’s Table France.

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